O Supremo Tribunal Federal decidiu que é um direito das mulheres interromperem uma gestação de um bebê amnencéfalo [antes que comece a discussão sobre a língua portuguesa, prefiro a forma amnencéfalo, guardando as raízes semânticas, do que anencéfalo, um aportuguesamento da palavra], isto é, de uma criança que não tenha desenvolvido parcial ou totalmente o cérebro. Sabe-se que uma criança nestas condições não terá condições de sobrevivência fora do útero – a sobrevida é curtíssima. A argumentação básica é que uma gestação nestas condições fere a dignidade da pessoa humana, no caso, levando-se em consideração que apenas a mulher é um ser humano. Esta é a premissa do voto dos senhores e senhoras do judiciário brasileiro. A presença de religiosos no STF trouxe à baila uma argumentação não jurídica: a de que a valorização da vida intrauterina é uma característica religiosa, não o papel do estado laico. Se a questão deve passar pela laicidade, então, cabe-me fazer uma pergunta: o que é o homem, do ponto de vista científico e filosófico? René Descartes estabeleceu a certeza da existência humana do pensamento, ao afirmar: "Penso, logo existo". Desta maneira, seria o cérebro a essência do homem? A moderna ciência admitiu isso quando decreta a morte de uma pessoa quando os processos cerebrais cessam – permitindo, assim, os transplantes que salvam muitas vidas. Partindo desta premissa, de que é o cérebro que determina a humanidade de um ser, seria natural que todo aquele que não tiver um cérebro funcional também não deve ser considerado um ser humano, ou, ao menos, um ser humano pleno. E, então, entramos no debate da amnencefalia. Tomemos um ser humano cientificamente ideal, cujo corpo é, como aprendemos nos livros de ciência, cabeça, tronco e membros e seus respectivos componentes. Se tirarmos os membros inferiores de uma pessoa, ela continua sendo um ser humano? A resposta é: sim, continua. Se tirarmos os membros superiores, esta pessoa continuaria sendo um ser humano? Novamente, a resposta é: sim, obviamente continua sendo um ser humano. Se pudéssemos trocar todos os membros internos do tronco [coração, pulmões, rins, fígado, estomago e todos os demais] pelos de outra pessoa, esta continuaria sendo um ser humano? Indubitavelmente a resposta continua sendo: sim, claro que continua. Já podemos trocar o coração de uma pessoa por uma máquina – se pudéssemos fazer isso com todos os seus membros, ainda teríamos uma mesma pessoa? Creio que a resposta continua sendo sim. A vida é mais do que um órgão, qualquer que seja ele – mesmo que este seja o cérebro. O que os meritíssimos e meritíssimas membros do STF acabaram de decidir foi que apenas o cérebro é a pessoa humana em sua essência [não consigo deixar de lembrar-me do inimigo do Máscara no desenho animado da década passada]. E julga-se no direito de extinguir uma vida porque o ser não dispõe de apenas uma funcionalidade. Seu coração funciona, seus órgãos internos estão funcionando – não importa o grau de precariedade nem porquanto tempo. Se está funcionando, ali há uma vida em curso. Mas o STF ignora tudo o mais e diz que apenas um cérebro em perfeito funcionamento é que é uma pessoa. O resto é carne, ossos, pura matéria, lixo. E como lixo pode ser retirado e jogado na lata de lixo, como tem acontecido constantemente.
O STF decide contra o entendimento da maioria da população brasileira. O STF joga na lata do lixo todo o desenvolvimento mental, cívico e religioso do ser humano. Em nome de um cientificismo, falso laicismo e, principalmente, sob enorme pressão de ativistas barulhentos, o STF ouve a voz rouca dos megafones e toma a si um lugar que não lhe pertence: o de decidir sobre quem vive ou não. Alguém grita: mas eles morreriam mesmo. É verdade. Todos morreremos mesmo. Mais cedo ou mais tarde. Isto não dá ao STF o direito de decidir quando deve cessar a vida de quem quer que seja. Na prática, já temos três casos de pena de morte no Brasil, e todos para aqueles que não tem sequer a oportunidade de cometer crime algum: para o caso de haver risco de vida para a gestante; para o fruto de um abuso sexual e, agora, para os amnencéfalos. O STF acabou de dizer que tem o direito de estabelecer que tipo de vida – e por quanto tempo – deve ser preservada pelo estado.
Para concluir, resta-me o argumento religioso: o STF colocou-se no lugar de Deus. Passou a decidir quem deve ou não viver. As leis brasileiras protegem tamanduás. Protegem micos. Protegem tartarugas e ovos de tartarugas. Mas pagam o mico de não proteger um ser humano em formação. Seria ridículo, se não fosse trágico.
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