Na mensagem anterior encerramos com um desafio aos cristãos verdadeiros. Fomos desafiados a fazer uma sondagem do coração, uma leitura desapaixonada de nossa própria vida, observando as ações e as motivações, buscando resposta para perguntas como: busco glorificar a Deus? Os meios que escolhi são edificantes? São convenientes? São lícitos? Quais as respostas? Certamente em algum momento tivemos que chegar à conclusão de que é necessário uma parada para confessar os pecados e tomar uma decisão às vezes muito difícil: realizar mudanças nas atitudes que temos tomado, mudanças que impactarão não apenas a nossa, mas a vida daqueles que estiverem próximos de nós.
A questão que se impunha aos crentes coríntios era sob qual padrão eles deveriam organizar sua vida. Havia defensores de Paulo, de Pedro, de Apolo, e até aqueles que propunham um modelo ainda mais elevado, o próprio Senhor Jesus Cristo. Em cada um destes modelos havia uma evidente dificuldade. Antes de analisarmos cada um destes modelos lembremos que a igreja em Corinto estava dividida em grupos controlados por pessoas que usavam do evangelho para angariar poder e prestígio no meio da comunidade - prestígio que deveria ter sido conseguido por serviço aos santos, por vida santa. Mas preferiam a polêmica, o divisionismo, a maldade, prejudicando o evangelho que, evidentemente, não amavam. Para alcançar seus alvos, por não serem, eles próprios, modelos de vida, apresentavam-se atrás de outros nomes, que já não estavam mais ali, e que, dadas as circunstancias, não poderiam dizer em alto e bom som: “Estes impostores não nos representam. Pretextando humildade estão destruindo a obra de Cristo. Causam mais mal à igreja do que os próprios ímpios”. Paulo poderia afirmar isto tranquilamente diante dos lobos disfarçados de ovelhas que havia em Corinto. Pedro faria o mesmo, assim como Apolo. Que dizer, então, daquele que conhece os corações, o Senhor Jesus Cristo?
Como os três primeiros não estavam presentes, e o quarto não estava em seus corações, apenas em suas palavras fingidas e em suas atitudes minunciosamente estudadas para dar aparência de piedade, eles podiam fazer o que bem entendiam. Cada um deles oferecia um modelo. Chamavam grupos da igreja a seguirem o modelo que entendiam ser de Paulo: cosmopolita, avançando rumo ao mundo gentílico, com um evangelho que libertava das amarras de qualquer forma de legalismo... Por outro lado outros ofereciam o modelo de Pedro, e a segurança dos costumes, das leis, das normas secularmente estabelecidas através de tradições minunciosamente guardadas. Que dizer, então, de Apolo, pregador eloquente, e os gregos gostavam da oratória, mesmo que destituídas de conteúdo realmente edificante, como podemos perceber pelo enorme sucesso que os sofistas faziam com seus discursos contratados e vazios naquele período de decadência da filosofia greco-romana. Por fim, ainda havia o modelo de um Jesus que para uns era inalcançável, por isso precisava ser, intencionalmente ou inconscientemente, rebaixado ao mesmo grau dos deuses greco-romanos.
O que disto era cristianismo? A resposta de Paulo é que nenhum daqueles modelos não passava de discursos vazios. Os “paulinos”, “petrinos”, “apolinos” ou “jesuínos” não passavam de manchas no verdadeiro cristianismo porque não estava resultando em nenhum impacto nem na vida da igreja nem entre os gentios. Se era assim, qual o modelo a ser proposto? Sem dúvida um que pudesse ser seguido, examinado, que eles conhecessem bem. E Paulo ousa desafiá-los a serem tal como ele. Ele ousadamente se oferece como modelo.
Pode parecer muita ousadia de Paulo, mas o fato é que Paulo podia fazê-lo do alto de sua autoridade apostólica e, principalmente, do exemplo de sua própria vida, como havia vivido entre eles: fora observado como um estranho, um peregrino; fora analisado como um pregador de “estranhos deuses”; tivera sua vida escrutinada por aqueles que se sentiam tentados a segui-lo, e após provado, fora aprovado entre os gentios [I Ts 1.9: ...pois eles mesmos, no tocante a nós, proclamam que repercussão teve o nosso ingresso no vosso meio, e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro]. Paulo certamente sabia do risco que estava correndo ao oferecer-se como modelo, pois um grupo poderia aplaudi-lo e os demais poderiam endurecer ainda mais a oposição. Mas devemos nos lembrar que Paulo estava escrevendo a crentes - homens e mulheres que haviam nascido de novo e obtiveram um novo tipo de discernimento [I Co 2.14: Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente].
A oposição de ímpios não era, em absoluto, novidade para Paulo. Oposição dentro da sua própria comunidade religiosa também, não, pois já havia tido pessoas que juraram mata-lo [At 23.12: Quando amanheceu, os judeus se reuniram e, sob anátema, juraram que não haviam de comer, nem beber, enquanto não matassem Paulo] acreditando que agiam piedosamente, como, aliás, acontecera com o próprio Paulo até seu encontro com o Senhor no caminho de Damasco [At 22:8 Perguntei: quem és tu, Senhor? Ao que me respondeu: Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem tu persegues]. Mas Paulo tinha a convicção que falava para aqueles que foram enriquecidos nele, em Cristo [I Co.4-9: Sempre dou graças a meu Deus a vosso respeito, a propósito da sua graça, que vos foi dada em Cristo Jesus; porque, em tudo, fostes enriquecidos nele, em toda a palavra e em todo o conhecimento; assim como o testemunho de Cristo tem sido confirmado em vós, de maneira que não vos falte nenhum dom, aguardando vós a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual também vos confirmará até ao fim, para serdes irrepreensíveis no Dia de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor]. Como podemos ver, a base da confiança de Paulo era o que Cristo fizera neles através da sua vida e mensagem.
Em quais áreas Paulo podia convocar os coríntios a serem seus imitadores? Antes que possamos ter alguma conclusão irrefletida ou apressada, Paulo faz a ressalva: ele não queria seguidores, queria que seus leitores o imitassem naquilo que ele também era um imitador de Cristo. E aqui quero destacar ao menos três áreas onde Paulo podia desafiar os coríntios, e, porque não, a nós também, a sermos seus imitadores.
OS CRISTÃOS E OS COSTUMES
A primeira área em que vemos Paulo conclamar-nos a sermos seus imitadores é no seu cuidado ao tratar com a sociedade, buscando não promover escândalos morais ou sociais, agindo com afronta à ordem natural das coisas. A filosofia paulina, certamente colocada em prática junto aos coríntios, era de fazer-se tudo para com todos, para ganhar alguns [I Co 9.22: Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns], sabedor que, ganhando ao menos um já havia grande alegria nos céus [Lc 15.7: Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento].
Um exemplo de como Paulo se fez “fraco”, por curioso e até contraditório que possa parecer, foi quando mandou circuncidar Timóteo [At 16.3-4: Quis Paulo que ele fosse em sua companhia e, por isso, circuncidou-o por causa dos judeus daqueles lugares; pois todos sabiam que seu pai era grego. Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que as observassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém]. Para Paulo a circuncisão era de nenhum valor espiritual [Gl 5.2: Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará] chegando mesmo a ser um empecilho, um peso na caminhada cristã [Gl 5.3: De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a guardar toda a lei] por isso não permitiu a circuncisão de Tito [Gl 2.3: Contudo, nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se], que não iria conviver com os judeus na Judéia.
Em relação aos coríntios isto se aplicava em relação ao véu. Não se tratava de um assunto eminentemente espiritual - usar ou não o véu não é uma ordenança bíblica e cristã. Mas em Corinto havia a necessidade de não ser causa de escândalo, e as mulheres coríntias [com exceção das que estivessem servindo como prostitutas cultuais] não andavam com a cabeça descoberta. Se era assim nas ruas, nos mercados, quanto mais importante se tornava nos serviços religiosos. Paulo trata de um costume que demonstrava a necessidade do homem portar-se como cabeça de sua família [Ef 5.23: ...porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo] e a mulher ser-lhe submissa [Ef 5.24: Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido]. Dentro dos costumes coríntios o uso do véu era sinal de aceitação de senhorio de alguém sobre a sua vida. Assim, se o homem era o cabeça, não deveria cobrir a sua cabeça... E, por semelhante modo, também a mulher, estando sob a autoridade marital, não deveria trazer a sua descoberta. O uso do véu nada significava para Paulo, judeu e cidadão romano. Era só um costume social, um signo para demonstrar uma verdade aceita mesmo entre os gentios. Ele poderia dizer que o véu nada era - nada era mesmo, da mesma maneira que os ídolos também nada eram, mas isto não só era desnecessário como seria absolutamente contrário aos métodos e propósitos de Paulo.
Paulo usa este exemplo para mostrar que os coríntios cristãos não deveriam usar de sua liberdade para serem motivos de escândalos entre os coríntios, pelo contrário, sua conduta deveria ser brilhante [Mt 5.14: Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte], saudável [Mt 5.13: Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens], a um só tempo impactante e condenatória, de modo que os homens observem a conduta cristã e sintam-se reprovados em seus atos malignos [I Pe 2:12: ...mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação] questionando-se qual a causa de tamanha diferença de comportamento [I Pe 4.4: Por isso, difamando-vos, estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de devassidão]. Até mesmo maridos incrédulos podiam ser convencidos da superioridade do evangelho pelo simples procedimento de suas respectivas esposas evitando contrariar os costumes locais [I Pe 3.1: Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vosso próprio marido, para que, se ele ainda não obedece à palavra, seja ganho, sem palavra alguma, por meio do procedimento de sua esposa].
Mesmo que não gostassem de Paulo, de suas palavras, de sua insistência quanto à verdade, não havia nenhum coríntio que pudesse dizer que Paulo fora ofensivo aos seus costumes, ainda que sua mensagem trouxesse transformações que abalariam a estrutura da sociedade greco-romana, com sua idolatria [I Ts 1.9: ...pois eles mesmos, no tocante a nós, proclamam que repercussão teve o nosso ingresso no vosso meio, e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro], feitiçaria [At 19.19: Também muitos dos que haviam praticado artes mágicas, reunindo os seus livros, os queimaram diante de todos. Calculados os seus preços, achou-se que montavam a cinquenta mil denários] e imoralidade [At 16:21: ...propagando costumes que não podemos receber, nem praticar, porque somos romanos]. No fundo uma das grandes mágoas romanas contra o cristianismo era que ele lhes trazia condenação e prejuízos [At 21.25: Quanto aos gentios que creram, já lhes transmitimos decisões para que se abstenham das coisas sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas].
OS CRISTÃOS E AS TRADIÇÕES
A segunda área em que vemos Paulo conclamar os cristãos a seguirem-no é no seu cuidado na interpretação e aplicação cultural de verdades eternas, e, por isso, supra culturais. Dito de outra maneira, Paulo buscava não ferir as tradições religiosas que não fossem afrontosas às Escrituras. Um exemplo de sua atitude para com os costumes religiosos é sua estada em Atenas. Embora revoltado em face da idolatria reinante [At 17.16: Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se revoltava em face da idolatria dominante na cidade] seu discurso foi de apresentação do Deus criador - seu método apresentar a verdade para que, olhos abertos, os atenienses pudessem perceber a mentira em que estavam envolvidos [At 17.22: Então, Paulo, levantando-se no meio do Areópago, disse: Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque, passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas].
Como Paulo, não concordamos com a idolatria. Não acreditamos que todos os caminhos levam ao mesmo lugar. Direções diferentes levam a destinos diferentes - a menos que, durante a jornada, haja uma mudança de rumo [e quase sempre isto tem um custo, seja em tempo, em energia e até mesmo no abandono de projetos pessoais, familiares, sociais]. Mas Paulo desafia os cristãos a imitarem-no no respeito às pessoas, ao que acreditavam, àquilo em torno do qual haviam construído sua visão de mundo, sem, no entanto, apresentar a salvação somente no genuíno evangelho de Jesus Cristo. É possível que hoje seja ainda mais difícil estabelecer uma diferença entre cristianismo e meros costumes e tradições cristãos.
Nossa experiência mostra que é menos difícil mostrar a salvação em Jesus Cristo a um incrédulo do que convencer alguém que tenha experiência religiosa a reformar sua vida. Não é sem razão que o Senhor Jesus afirmou que veio chamar pecadores e não justos [Lc 5.32: Não vim chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento]. O que isto significa? Entendo que as palavras de Jesus são uma advertência àqueles que se acham justos, como o religioso fariseu no templo [Lc 18.11-12: O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho] e não se percebem como realmente são, pecadores que carecem da graça redentora de Deus em Jesus Cristo [Lc 18.13: O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador!].
Paulo não apenas compreendeu esta verdade como a vivenciou, a ponto de dizer que tudo o que era em termos de religiosidade e tradições precisou abandonar para ser, finalmente, ser encontrado em Cristo [Fp 3.4: Bem que eu poderia confiar também na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé; para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte; para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos].
É muito difícil para um religioso admitir que sua religião é um caminho inócuo. É muito difícil para alguém assim admitir que tem andado em vão, que tem se esforçado, mas não no Senhor, e, assim, seu trabalho não produz os frutos desejados. Mas é com a graça, não com a ofensa, que os corações são transformados, que as mentes são moldadas para conhecerem a Cristo. Em Corinto Paulo anunciou a Cristo [I Co 2.2: Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado], e este crucificado, sem se importar com a maneira como sua mensagem seria vista - ele conhecia o poder do evangelho [I Co 1.18: Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus], e o Espírito faria a obra, chamaria os seus através da mensagem fiel [I Co 1.24: ...mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus], não da beleza dos argumentos que ele poderia oferecer, porque a fé deve ser apoiada somente no poder de Deus [I Co 2.5: ...para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus].
Nisto Paulo conclamava os coríntios a imitarem-no. Ao mesmo tempo que respeitava as tradições coríntias, mesmo as tradições religiosas, oferecia-lhes um modelo de vida moldado pela Palavra de Deus - e isto fez diferença em muitas vidas. Anunciava e vivia a verdade de Deus, mesmo numa das cidades mais pervertidas do I século. E colheu frutos, frutos abundantes, esparramando-os à vista dos próprios coríntios porque eles eram estes frutos [II Co 3.1-3: Começamos, porventura, outra vez a recomendar-nos a nós mesmos? Ou temos necessidade, como alguns, de cartas de recomendação para vós outros ou de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos os homens, estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações].
Para os coríntios o véu, que nada era, tinha um grande significado. O respeito que a igreja deveria ter para com este costume e tradição religiosa subjazia no fato de que a submissão da mulher ao homem [representada pelo véu], e o papel que este tinha como líder do lar não eram invenção humana, eram e continuam a ser instituição divina. Não havia a necessidade de pregar novamente para que eles cressem ou aprendessem outra vez essas coisas - havia a necessidade de corrigi-los para que vivessem de acordo com a fé que haviam abraçado anteriormente. Eles tinham conhecimento de como Paulo plantou - e podiam imitar a Paulo nisso. Respeito pelas tradições sem, entretanto, compactuar ou praticá-las, abandono das práticas pecaminosas e ofensivas à santidade de Deus e, finalmente, uma vida que demonstra a diferença que Cristo faz na vida dos seus seguidores.
OS CRISTÃOS E A COMUNHÃO
A terceira área em que vemos Paulo nos desafiar a imitá-lo é no cuidado incessante para preservar a unidade e a fraternidade dentro do corpo de Cristo. “Contudo” indica que nem os costumes sociais nem as tradições religiosas são mais importantes que a unidade da fé construída em torno da verdade revelada de Deus.
Paulo propõe aos cristãos coríntios que, se e quando necessário, sejam como ele, imitem-no modificando a sua maneira de encarar as convenções sociais e culturais à sua volta. Sabemos que é impossível transformar o mundo numa igreja perfeita. Se tivermos igrejas melhores, com pessoas transformadas pelo evangelho, mais amorosas e mais santas, já teremos dado um grande passo. No passado houve quem acreditasse que o evangelho cresceria e se expandiria de tal maneira que não haveria um só lugar onde sua influência fosse determinante. Este ufanismo evangélico, vislumbrando nas pregações e escritos de autores famosos como Jonathan Edwards, ainda está presente. Ainda vemos placas e pôsteres, marchas e coisas semelhantes a declarar que tal cidade, estado ou país é do Senhor Jesus. Afirmo sem receio que o Senhor não está em guerra por territórios contra o diabo. Tudo lhe pertence, e no tempo da restauração de todas as coisas isto ficará claro, para os crentes e para os incrédulos. Mas não teremos uma sociedade santa antes deste momento [Mt 24.9-114: Então, sereis atribulados, e vos matarão. Sereis odiados de todas as nações, por causa do meu nome. Nesse tempo, muitos hão de se escandalizar, trair e odiar uns aos outros; levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo. E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim].
Mudanças cosméticas, mudanças de comportamento social podem ser conseguidas com o evangelho, sem o evangelho, à parte do evangelho e até mesmo contra o evangelho. Há muitos ensinos que propõem [e conseguem] ao homem mudanças em suas atitudes sociais e culturais. Mas isto não resolve o problema, não salva ninguém de si mesmo, nem de seus pecados [Tg 2.10: Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos]. Um incrédulo pode imitar Paulo no seu cuidado com as convenções sociais. E há os que o fazem muito melhor que muitos cristãos.
Mudança religiosa também pode ser obtida afrontando ao evangelho de Jesus Cristo, até mesmo dentro da igreja cristã. Paulo teve dificuldades com aqueles que aparentavam, e apenas aparentavam, serem importantes para a verdadeira igreja, ainda que fossem influentes na igreja local [Gl 2.6: E, quanto àqueles que pareciam ser de maior influência (quais tenham sido, outrora, não me interessa; Deus não aceita a aparência do homem), esses, digo, que me pareciam ser alguma coisa nada me acrescentaram]. Havia pessoas que guardavam criteriosamente as tradições religiosas, os costumes, mas que não progrediam na fé [Cl 2.23: Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade].
Este tipo de encenação, de pantomima, pode ser feita por qualquer incrédulo. Já no II século houve um inimigo do cristianismo que se fez passar por cristão, chegou mesmo a tornar-se pastor de uma comunidade, deixou-se encarcerar [e foi liberto mediante pagamentos feitos por cristãos às autoridades romanas] apenas para ridicularizá-los em seus escritos. Qual a eficácia disto? Nenhuma [Is 59:6 As suas teias não se prestam para vestes, os homens não poderão cobrir-se com o que eles fazem, as obras deles são obras de iniquidade, obra de violência há nas suas mãos].
A orientação de Paulo é muito clara: devemos fugir de tais falsificadores da fé [II Tm 3.1-7: Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes. Pois entre estes se encontram os que penetram sorrateiramente nas casas e conseguem cativar mulherinhas sobrecarregadas de pecados, conduzidas de várias paixões, que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade].
Todavia, a proposta de Paulo é a de uma mudança eminentemente espiritual, fruto da ação do Espírito Santo na vida do crente. Sem esta mudança nada do que pode ser conseguido com ascetismo, com autocontrole, com regras, tem proveito algum. Véus, cabelos curtos ou compridos, nada disso efetuaria a verdadeira espiritualidade.
Quero destacar o cuidado de Paulo para que os coríntios fossem corretamente instruídos sobre a vida cristã. Eles nada sabiam do judaísmo, não tinham a experiência de ter a lei como aio [Gl 3.24-25: De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio] e por isso Paulo lhes entregou orientações para não se deixarem enredar por falsos mestres. Certamente lhes passou as orientações do concílio de Jerusalém [At 21.25: Quanto aos gentios que creram, já lhes transmitimos decisões para que se abstenham das coisas sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas], mas não era ele, Paulo, o Senhor da consciência dos coríntios. E é por isso que ele afirma que os coríntios deveriam saber que Cristo é o cabeça, e é sob ele que a igreja progride ou, sem ele, degenera em mera instituição humana [I Co 11.3: Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo].
Essa mudança espiritual proposta por Paulo é definida com clareza no verso 16 [Mas, se alguém quiser ser contencioso, nós não temos tal costume, nem as igrejas de Deus]: nem os costumes, nem as tradições, por mais arraigadas e antigas que sejam, deveriam ser motivo para contendas dentro da igreja ou envolvendo a igreja. A unidade da fé, a fraternidade cristã não deveria ser fragmentada por opiniões, costumes, tradições - e, ao mesmo tempo, ela não pode ser fragmentada pela verdade bíblica. Paulo identifica o problema: a altivez de coração. Os coríntios rejeitavam toda e qualquer autoridade, escolhendo para si a autoridade que menos lhe desagradasse. Paulo diz que isto não poderia ser assim, não poderia continuar assim, todo pensamento deveria ser, primeiro, orientado pela Palavra de Deus [II Co 10.4-5: Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo]. O problema dos cristãos coríntios - e o de muito do cristianismo atual não é desconhecimento [ainda que haja muito, muito desconhecimento] - mas, e principalmente, de obediência.
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