sexta-feira, 4 de setembro de 2009

ESTADO LAICO, INTOLERÃNCIA E IDOLATRIA – UM PASSO ALÉM

P8230069Sempre afirmei que gosto de um bom diálogo, de um bom debate, mesmo com quem discorda do meu ponto de vista. Mas para caracterizar um bom debate é necessário que haja algumas características: respeito, ética, coerência argumentativa. Nem sempre os comentários que me chegam conseguem passar neste filtro. O que fazer com eles? Ora, a mesma coisa que fazemos com algo que não presta para nada: a lata do lixo. Alguns dos meus leitores [lêem porque querem, não faço questão] sabem muito bem disto. Lembrem-se que o debate surgiu à partir da provocação de um pseudo-mestre "semi-inteligente".

No artigo ESTADO LAICO: INTOLERÂNCIA E IDOLATRIA tratei de algo que considero tolice: a proibição de símbolos religiosos em repartições públicas. E devo lembrar que em momento algum defendi a adoção obrigatória dos mesmos – seja de qual religião for, embora minha opinião particular seja de que qualquer que seja a imagem adotada não passa de "vaidade", isto é, coisa de nenhum proveito, inutilidade. Repito, seja de qual religião for.

Recebi um comentário bastante interessante de um leitor, ou leitora, sacerdote brâhmana, que trata do assunto. Aliás, trata-se de um dos signatários da iniciativa que foi alvo do comentário do artigo em tela. Vale lembrar que, em matéria de liberdade e tolerância religiosa há lugares onde o hinduísmo é oficial o cristianismo é proibido e perseguido.

Vamos adotar aqui a prática do diálogo com o referido leitor ou leitora. Sei que ficou longo, não é do meu feitio, mas o caso pede. Afirma a pessoa citada acima que, em se tratando de Estado,

Laicidade não trata de desprezar, nem de negar ou de substituir a fé.

A melhor definição de Estado laico é justamente a de isonomia no trato com as preferências religiosas de quem quer que seja. Ninguém deve ser discriminado por causa de sua preferência religiosa. A função do Estado é proteger o cidadão no exercício de sua fé – de modo que ele não seja cerceado do seu direito de exercício espiritual [desde que este exercício não atente contra as leis do país].

Devo reafirmar que a remoção de símbolos religiosos não é uma tentativa de suplantar qualquer tipo de dogma.

É bom lembrar que a tentativa de retirada de símbolos religiosos partiu de um grupo de entidades religiosas e para-religiosas [umbandismo, budismo, espiritismo, hinduísmo – e todas têm seus símbolos, suas imagens] contra símbolos do cristianismo [repito, não os considero necessários e, mais ainda, contrários à vontade revelada de Deus nas Escrituras Sagradas, a Bíblia]. Por mim os pretensos símbolos do cristianismo não existiriam, mas nem por isso sairei por aí chutando-os ou arrancando-os das paredes. Nenhum dos proponentes se lembrou de mencionar que os símbolos das outras entidades fossem também retirados – e os há em numerosas repartições públicas, garanto. Logo, trata-se, sem sombra de dúvidas, de um ataque a uma visão religiosa – repito, da qual não compartilho em sua totalidade.

Laicidade significa apenas que tanto a opção entre quaisquer formas pensamento místico-religioso ou visão racional como formas de visão de mundo dos cidadãos deve ser matéria de foro íntimo. Não cabe ao Estado propor a primazia de qualquer um deles sobre o outro e, no tocante à exibição de símbolos, a única maneira de fazer com que o Estado não promova nenhuma corrente acima das demais é com paredes limpas.

É natural que o estado laico não defenda nenhuma forma de religião – a separação Estado-Igreja é norma constitucional brasileira [embora não levada a sério, é verdade]. Assim, uma vez que o Estado não tem o direito de promover qualquer forma de religião [e o faz, no Brasil] também não lhe cabe legislar sobre o que é feito pelo cidadão em suas expressões de religiosidade. Um membro de uma religião não pode ser impedido de, crendo que seu "deus" lhe dá algum tipo de sabedoria no exercício de sua função, portar um símbolo de sua crença [mais uma vez repito – considero-os mais que dispensáveis]. Desta forma o Estado não pode impedir o uso de um símbolo religioso sobre a mesa de um juiz – por exemplo. O que o estado pode impedir é que a decisão do magistrado se dê por inclinação religiosa.

O termo "Laico" não quer dizer inimigo da religião. Laico significa ser a favor do respeito pleno a todas as religiões, sem exceção, assim como à ausência delas. A presença de símbolos religiosos em repartições públicas está ligada a uma inegável manifestação de preferência por parte do Estado, e a laicidade é a garantia de que não haja preferências para sermos todos iguais perante a lei e perante o Estado.

Como lembrado anteriormente, não cabe ao Estado tomar decisões sobre a religiosidade do cidadão – nem promovendo-a, nem perseguindo-a. Até onde consta não há qualquer obrigatoriedade de que haja qualquer símbolo religioso em repartições públicas. Não há nenhuma lei promovendo tal uso. O Estado, até onde se sabe, jamais ordenou a retirada ou a implantação de tais símbolos. O que o Estado não fez e não fará é proibi-los.

Analogamente, não é preciso imaginar que sejam inimigos do esporte os indivíduos que desejem retirar bandeiras de times de futebol de tribunais de direito: trata-se apenas de ser amigo da neutralidade e idêntico respeito frente a todos os times.

Geralmente uma analogia esconde um defeito argumentativo. E isto é facilmente demonstrável neste caso. Futebol não é religião. O Estado intervém nos estatutos que regem o futebol, permite ou não a existência dos clubes, cobra impostos dos mesmos. Futebol e religião não são a mesma coisa. O Estado se reserva o direito de legislar sobre a existência dos clubes – mas não tem este mesmo direito em relação às entidades religiosas que não atentem contra a moralidade ou contra a legalidade. Bandeiras de clubes desportivos não são símbolos religiosos – entretanto, mesmo em relação a estes o Estado não obriga nem interfere na preferência do cidadão.

O Estado laico não é ateu, mas é um estado sem preferência nem demonstração de fé. A condição de não ser ateu e simultaneamente não ter fé talvez seja contraditória em um indivíduo, mas não o é quando se trata de um Estado, pois estes não podem ser sujeitos da liberdade religiosa. A liberdade religiosa só pode ser exercida por indivíduos e suas associações na sociedade civil, não por Estados.

Em momento algum foi colocada a questão do ateísmo no meu artigo anterior – e não creio na existência real de ateus – creio na existência do que chamo de "à toas" – algo que já fui um dia embora me declarasse um ateu filosófico e vivesse como um ateu prático. Na hora do aperto sempre sai um "Ai meu deus" – seja ele qual deus for [o uso do termo deus, assim mesmo, com minúscula, é para diferenciar do uso que faço do nominativo do Deus que creio ser o verdadeiro – mas isto é assunto para outro artigo]. O Estado, caso se declarasse ateu, estaria, na verdade, tomando uma posição anti-religiosa, e, portanto, se colocando além e contra aqueles que realmente o constituem, os cidadãos. O Estado só existe na medida em que existem os cidadãos. Não há Estado sem povo. O laicismo, diferente do ateísmo, implica em que o Estado não fará nenhum tipo de lei cerceando o direito do cidadão de exercer sua religiosidade dentro dos limites legais [ninguém pode, a pretexto de liberdade religiosa, drogar-se, ou cometer abusos contra crianças, por exemplo].

Como a questão é importante, vale a pena entendê-la em detalhe. A rigor, Estados não podem ter ou deixar de ter fé: a fé é uma característica de pessoas. Instituições ou Estados podem, quando muito, promover uma ou outra fé, ou a falta dela.

Não cabe ao Estado promover ou proibir qualquer forma de expressão religiosa. Esta é uma falácia teórica e uma prática adotada em teocracias ou pseudo-teocracias, já que na verdade toda "teocracia" é, na prática, alguma forma de oligarquia. É assim em todos os lugares onde o Estado pretende sobrepor-se à religiosidade – a história o tem demonstrado. E o cristianismo, religião que professo, não deixou de cometer os mesmos erros. Mas repito, sou completamente contrário à qualquer relação de interdependência entre Estado e Igreja.

Entendendo que Estados laicos são sempre neutros com relação às matérias religiosas, uma vez que se há preferidos, há preteridos, então a laicidade implica que o Estado não promova nenhuma posição com relação à religião: nem o ateísmo, nem qualquer credo religioso. Nesse sentido, o Estado laico não é ateu, mas também não tem fé – ou seja, não promove a fé.

Sem sombra de dúvida o Estado erra quando promove ou age no sentido de cercear expressões de fé. É mais que sabido que em determinados lugares, como Aparecida, no interior de São Paulo, é simplesmente proibida a manifestação de qualquer religiosidade que não o romanismo marista. Este autor já foi proibido e ameaçado de prisão por pregar o evangelho em uma determinada área em uma cidade no interior do estado da Bahia, Bom Jesus da Lapa.

Afinal de contas, a fé ou falta dela é uma questão de foro íntimo e deve ser completamente voluntária, e não objeto de política pública. Assim, o Estado laico não se antepõe a símbolos religiosos!

Assumir a tese final acima, de que o Estado laico não se antepõe a símbolos religiosos torna a proposta feita pelas associações mencionadas no artigo anterior uma bobagem inócua. Se o Estado não deve propor, nem proibir, qual a função do projeto apresentado se não o mencionado no artigo, isto é, colocar o assunto em debate para chamar a atenção aos seus proponentes. Ora, convenhamos: se o Estado não deve proibir uma expressão de fé, seja ela onde for [e proíbe, como mencionei anteriormente], então pedir que o Estado proíba símbolos religiosos [seja de qualquer religião for] é ser, no mínimo, incoerente e contraditório.

O Estado laico deve ser um árbitro que garante a todos a liberdade religiosa plena. E, como todo bom árbitro, ele não pode se comprometer com nenhum lado, do contrário sua isenção estaria comprometida.

Novamente devo lembrar que ao Estado não cabe o papel de árbitro [um árbitro tem como função primária decidir quem está certo em uma disputa, o que não é o caso], mas apenas de "segurança". Ele não deve julgar entre religiões – deve apenas não permitir que o cidadão seja tolhido em expressar sua religiosidade dentro do ordenamento legal.

O que seria do juiz de futebol que apitasse um jogo portando símbolos de qualquer time? Assim como o Estado, o árbitro não se antepõe a nenhum clube de futebol, e bem por isso ele não pode se associar a qualquer um deles. O Estado laico, da mesma maneira, não é contra símbolos religiosos, mas contra ouso de símbolos religiosos em repartições públicas, de maneira que eles comprometam a neutralidade desse Estado.

Mais uma vez a analogia é pior que a argumentação procedente, e por um motivo muito simples: os árbitros de futebol tem preferências clubísticas. Um exemplo: um brasileiro que apite um jogo entre os selecionados uruguaios e paraguaios vai deixar de ser torcedor do selecionado brasileiro? É óbvio que não. O que ele não pode é ajudar ou prejudicar, deliberadamente, um dos dois selecionados em virtude de sua preferência. Assim, o Estado não pode aplicar a lei discricionariamente para promover ou coibir qualquer forma de religiosidade. E, repito, não há lei obrigando a adoção de símbolos religiosos, quaisquer que sejam, em repartições públicas – assim como não deve haver leis proibindo-as.

É muito curioso que os defensores do Estado laico sejam acusados de intolerantes se eles são os únicos que propõem que a lei seja cumprida com rigor para fazer valer a igualdade plena entre cidadãos. Será intolerante quem deseja retirar os símbolos de um clube de futebol dos tribunais, ou intolerante é quem não admite quaisquer outros símbolos, nem a ausência deles?

Sei que está se tornando cansativo, mas repito: não há lei alguma que obrigue a adoção de símbolos religiosos em repartições públicas. Não há nenhuma lei neste aspecto que os pretensos defensores do Estado laico queiram ver cumprida. O máximo que podem afirmar é que há uma lacuna legal quanto a isto – e querem suprir esta lacuna com uma proibição que, por si mesma, seria inócua, uma vez que, quando há tais símbolos nos referidos locais, eles não são objetos de culto e, na maioria das vezes, sequer são notados dados os ânimos de quem se encontra em um tribunal. A chave para entender o pensamento da ONG "O Brasil para todos" [que aliás é o slogan de uma peça publicitária do governo petista] é a frase "não admite quaisquer outros símbolos, nem a ausência deles". Não admite o quê? Que pretensão absurda de legislar sobre questões de foro íntimo alheio.

Sim, cabe enfatizar que a Constituição Federal não conformou um Estado ateu, nem hostil ao cristianismo, apenas estabeleceu um regime não confessional. Não há religião oficial, mas também não há política oficial de repúdio à religião.

A proposta vem realmente suprir a lacuna: não há religião oficial, mas também ainda não há política oficial de repúdio à religião. E a iniciativa da tal ONG é justamente instaurar uma atitude de proibição. As ditas minorias hoje são mais autoritárias do que as maiorias do passado: querem protecionismo para entrar na faculdade, querem protecionismo à preferências sexuais heterodoxas com punição a quem não as aceitar, querem protecionismo a afro-descendentes [com indenizações milionárias]. É uma nova fase, a do quem grita mais afinado [ou mais estridente] leva mais regalias.

A laicidade, repito, não é o repúdio à religião, e é por isso que diversos grupos religiosos apóiam a iniciativa Brasil para Todos, de retirada de símbolos religiosos de repartições públicas. Mas laicidade é, sim, repúdio ao uso do Estado a serviço de qualquer religião ou do ateísmo.

Quero ressaltar, para concluir, que não sou favorável à existência dos símbolos religiosos – sejam hindus, budistas, xintoístas ou cristãos. Creio que a Escritura Sagrada, a bíblia, palavra Revelada de Deus, proíbe expressamente a confecção e adoração [ou reverência, ou idolatria, ou veneração] de imagens de qualquer coisa que tenha sido criada por Deus. Como nada há que não venha da mão do criador, proíbe-se a confecção e adoração de qualquer imagem. Lembro ainda que as imagens [de Buda, pretensamente representando Jesus Cristo, de Shiva ou de quem quer que seja] não são objetos de adoração em repartições públicas, não sendo nem proibidas nem incentivadas pela legislação estatal, mas são expressamente proibidas na lei divina.

Não estou, por fim, defendendo a adoção das mesmas – posiciono-me contra a intolerância e a tentativa de tornar a preferência de um grupelho em obrigação para a grande maioria da população. Religião é assunto de pregação, de convencimento e de conversão – não de obrigatoriedade legal.

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