Jo 1.14 E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.
Segundo as mais confiáveis tradições João escreveu o seu
evangelho por volta do ano 95 Dc., na cidade de Éfeso. Isto não é questão de
fé, embora se saiba que seus escritos foram os últimos do cânon
neotestamentário, atendendo a uma necessidade da Igreja de seu tempo: responder
a seu mundo, no fim do sec. I, quem tinha sido (ou quem é) realmente Jesus.
Diferente dos outros evangelhos, chamados de sinóticos (isto
é, de um mesmo ponto de vista, mais histórico) João apresenta Jesus como o
Filho de Deus, o Verbo divino que se fez carne e fez habitação entre os homens,
dando início à sequencia mais importante de eventos da história da humanidade –
encarnação, vida santa, morte e ressurreição – que só vai findar com seu
retorno glorioso.
Este Jesus, embora João não se detenha nestes assuntos, é o:
Prometido a
Adão e Eva – Gn 3.15;
Previsto por
Jacó – Gn 49.10;
Revelado a
Moisés – Dt 18.18;
Aguardado
por Jó – Jó 19.25;
Anunciado
por Isaías – Is 7.14;
Proclamado
por Gabriel – Lc 1.26-28.
Observe que todas estas manifestações revelacionais, em todo
o Antigo Testamento e adentrando o Novo Testamento são, sempre, pessoais – não
são contos ou mitos, como nas religiões pagãs. Vamos ver o que João fala do
cumprimento desta promessa:
1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus. 2 Ele estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas foram
feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.
4 A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. 5 A luz
resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. 6 Houve um
homem enviado por Deus cujo nome era João. 7 Este veio como testemunha para que
testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio
dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, 9 a saber, a
verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem.
10 O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu. 11 Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam. 12 Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem
feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; 13 os quais não
nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de
Deus.
14 E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça
e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.
João não se propôs a escrever uma biografia de Jesus, embora
tivesse o claro propósito de relatar os fatos
que comprovavam que Jesus é o Filho de
Deus, para que os seus leitores pudessem reconhecê-lo desta maneira, e,
caso cressem nele, obtivessem a vida eterna.
João não registrou muitas coisas importantes (nem por isso
deixamos de ter estas informações que nos são oferecidas por outros
evangelistas). Vejamos as “lacunas” propositais deixadas por ele:
A
genealogia de Jesus – o foco de João era demonstrar a eternidade de
Jesus, por isso a procedência familiar de Jesus não era importante no contexto de seu evangelho, porque,
evidentemente, Jesus não foi gerado por homem ou mulher alguma, isto é, sua
procedência é do pai, ele é eterno, como já havia sido anunciado por Isaías (Is
9.6). Mateus registra a linhagem legal e real de Jesus, por intermédio de José,
esposo de Maria e descendente de Davi (Mt
1.1-16) e Lucas registra a linhagem pessoal, através de Maria (Lc 3.23-38). Ambos enfatizam a verdadeira humanidade de Jesus, o que
também é essencial para a redenção dos pecadores.
O
nascimento de Jesus – também não é relatado por João porque sua mensagem
é a respeito da eternidade do Verbo de Deus, portanto, ainda que sua encarnação
era real (e ele diz que o Verbo se fez carne) havia já outros
evangelhos a tratarem do tema.
A infância
de Jesus – novamente, as faixas etárias às quais todos os homens
estão sujeitos não eram importantes no contexto da mensagem a ser proclamada.
João não pretende tratar, temporalmente, do que é eterno.
A tentação
de Cristo – o verbo é mostrado como o Senhor, o Filho de Deus, e a sua
tentação revela muito mais da perspectiva de sua humanidade e sua
representatividade como nosso sumo sacerdote perfeito (Hb 4.15).
A
transfiguração de Cristo – a renúncia de Jesus à sua glória foi apenas ao
adentrar na história humana, por um pouco de tempo e com um propósito que logo
seria cumprido. João dá uma dica e demonstra a sua visão retrospectiva ao falar
da origem de Jesus (Jo 3:13 - Ora,
ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem
[que está no céu]).
A escolha
dos discípulos – João apresenta Jesus como o salvador do mundo (Jo 3.17) e não apenas como o salvador
de apenas um grupo de judeus. A escolha dos discípulos (provavelmente todos já
estavam mortos quando ele escreveu o seu evangelho e suas cartas) é uma etapa
inicial de um propósito muito maior – e João não está tratando das origens, mas
do significado e consequências da encarnação do Verbo.
As
parábolas de Jesus – um dos métodos de ensino que Jesus mais usava era
extremamente contextualizado, especialmente entre os judeus, e por mostrar
Jesus falando sobre coisas temporais que
os homens de seus dias e região compreendiam é deliberadamente deixado de lado
porque João afirma que ele veio falar das coisas do céu (Jo 3.12).
A Ascenção
de Jesus – a ascensão de Jesus não era, para João, especialmente 60
anos depois, um fato extraordinário. Era, apenas, uma etapa necessária após ele
ter cumprido a sua missão terrena (Fp
2.9-11).
A grande
comissão – a grande comissão registrada por Marcos e Mateus
continuava de pé, fazia parte da realidade da Igreja e João entendia que ela
era uma realidade presente e essencial na vida da Igreja.
PORQUE
JOÃO FALA DE UM EVENTO SEM DATÁ-LO
João tem como objetivo tratar da divindade de Jesus. Em seus
dias havia um ensino que se alastrava e já havia adentrado na Igreja[1],
e o apóstolo resolve tratar de um evento com origem eterna, de significado
eterno e de consequências eternas. Em suma, para João, o advento de Cristo é um
evento no tempo, todavia, atemporal.
O
VERBO ETERNO
1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus. 2 Ele estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas foram
feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.
Os primeiros três versos enfatizam a divindade e a eternidade
de Jesus. Ele é o que no principio[2],
antes que qualquer coisa viesse a existir, já tinha existência própria.
Propositalmente João une dois elementos – um religioso, o relato da criação (Gn 1.1) com a visão grega a respeito da
origem de todas as coisas. Ele é o Verbo, a palavra[3],
também chamado em outros textos de “sabedoria”. Mas o ponto fundamental neste
primeiro momento é identificar o verbo como divino[4]
e João fecha a questão afirmando que ele é o Verbo, o originador de todas as
coisas, mas, ao mesmo tempo, o Verbo não é o pai, pois do contrário não poderia
estar com ele.
É por ser o verbo eterno que ele é, também, o salvador eterno
que tira os pecados do mundo (Jo 1.29),
designado para um ministério salvador antes mesmo de o próprio mundo ser criado
e antes da queda ser consumada (I Pe
1.20).
A
REJEIÇÃO DO VERBO
4 A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. 5 A luz
resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. 6 Houve um
homem enviado por Deus cujo nome era João. 7 Este veio como testemunha para que
testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio
dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, 9 a saber, a
verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem.
Quais as consequências da vinda de Jesus? João mesmo
responde, afirmando que veio salvar pecadores mas, ao mesmo tempo, evidenciar o
estado de condenação daqueles que o rejeitaram. João diz que ele era a luz do mundo
e foi rejeitado como luz – não porque tenha faltado luz, ou não tenham sido
avisados dela, já que o Senhor enviou João batista com este propósito e ele o
cumpriu de maneira eficiente (Jo 1.36-37).
Mas eles rejeitaram a luz porque eram maus (Jo 3.19) e seus olhos eram maus (Mt 6.23).
Jesus também foi rejeitado como o Messias (Jo 1.11), e aqueles para quem ele veio,
seu povo (Jo 4.22). Quanto mais
Jesus lhes falava das coisas celestes mais eles o odiavam, a ponto de
planejarem sua morte (Jo 7.19, 8.37, 40).
Isto ficou bastante evidente quando Jesus lhes disse que eles eram indignos do
reino através da parábola dos lavradores maus (Mt 21.33-43). Os judeus, que aguardavam o messias, oraram, cantaram
e profetizaram a respeito de sua vinda não o quiseram receber quando ele chegou
(Is 53.2; Lc 19.14; At 7.51-52).
MAS
AOS QUE O RECEBERAM
10 O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu. 11 Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam. 12 Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem
feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; 13 os quais não
nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de
Deus.
Independente da rejeição por parte dos judeus o verbo viria –
e efetivamente veio. todos os que não o receberam continuam na condição de filhos da ira (Ef 2.3) e sobre os tais permanece a ira de Deus (Jo 3.36). Não nasceram de novo, embora
descendentes de Abraão segundo a carne não lhe seguem na filiação espiritual (Mt 3.9). Mas aos que receberam a Jesus
é dado o privilégio de serem tornados filhos de Deus porque creem no seu nome.
Não são filhos de Abraão, mas são filhos de Abraão (Rm 4.16).
Não havia como não perceber a glória de Deus em Cristo Jesus.
O Verbo habitou em um corpo mortal e depois o revestiu de imortalidade, da
mesma maneira que acontecerá com aqueles que foram feitos filhos de Deus (II Co 5.1, 4; II Pe 1.13-14). Cristo
revela tudo quanto precisamos saber sobre a natureza divina (Cl 1.15). Embora João não fale da
transfiguração, ele estava lá (Mt 17.2)
mas o que realmente impactou a todos é a revelação do caráter divino na pessoa
de Jesus (Hb 1.3; Cl 2.9) revelando
o caráter santo de Deus (Mt 5.37) e
a graça misericordiosa de Deus em favor de pecadores indignos (Jo 14-16; I Pe 3.18).
A
ATEMPORALIDADE DA ENCARNAÇÃO
O fato de João não ter se preocupado em datar o nascimento de
Jesus, ou até mesmo em falar com ele nos leva a considerar que, embora tais
fatos sejam importantes, não devemos incorrer no erro de idolatrar um dia ou
época do ano qualquer. Cristo veio, mas sua importância e significado
transcendem o tempo. Calvino já lembrava que era impiedade sacramentalizar um
dia em detrimento de todos os demais dias do ano – mas ao mesmo tempo devemos
observar que ele não censura as Igrejas que o celebravam, como podemos ver aqui
“…quanto ao restante, meus escritos testemunham os meus
sentimentos nesses pontos, pois neles declaro que uma Igreja não deve ser
desprezada ou condenada porque observa mais festivais do que outras. A recente abolição
de dias de festas (Em Berna, 1555) resultou apenas no seguinte: não se passa um
ano sem que haja algum tipo de briga e discussão; o povo estava dividido ao
ponto de desembainharem as suas espadas”[5].
Também há escritos seus afirmando que prezava a celebração do
nascimento de Cristo (“Antes da minha chamada à cidade, eles não tinham nenhuma
festa exceto no dia do Senhor. Desde então eu tenho procurado moderação afim de
que o nascimento de Cristo seja celebrado”)[6].
O atual formato de comemoração do nascimento do Senhor Jesus idolatra um dia –
e por mais que esta seja uma oportunidade de evangelização, ainda assim
reveste-se de alguma idolatria – em detrimento de todos os demais dias que o
Senhor fez. Outra prova de que Calvino não era contra a celebração das datas
festivais, natal inclusive, é o fato de que os magistrados genebrinos
determinaram que a Santa Ceia fosse celebrada no natal, na páscoa, no
pentecostes e na festa das colheitas[7].
Ademais, até mesmo o sínodo de Dordrecht, em 1578, postula que
“considerando que outros dias festivos são observados pela
autoridade do governo, como o Natal (..] páscoa (…) pentecostes (…) ano novo
(…) e o dia da ascensão, os ministros deverão empregar toda a diligencia para
prepararem sermões nos quase eles, especificamente, ensinarão a congregação as
questões relacionadas com o nascimento e ressurreição de Cristo, o envio do
Espírito Santo, e outros artigos de fé direcionados a impedir a ociosidade”.
Chega a ser irrelevante e irritante ver tantas pessoas
desejando feliz natal (cada vez mais com papai Noel e com cada vez menos de
Jesus) e que o menino Jesus nasça nos corações (afinal um menininho é
bonitinho, não exige mudança de vida. Só que Jesus não vai mais nascer, ele já
nasceu e isto de uma vez por todas) e que reine a paz (sem se lembrar que a paz
é fruto do Espírito na vida dos crentes) quando vive o ano inteiro sem se
lembrar da vontade de Deus para sua vida.
Não tenho problema com a ceia e a celebração em si – desde
que tudo seja parte de um estilo de vida onde, em todos os momentos, o crente
afirme: Jesus nasceu para dar a sua vida e nos salvar de nossos pecados. Jesus
nasceu, viveu, morreu e ressuscitou – por mim e por ti. E voltará para buscar
os que nele creem.
[1] Poucas
décadas depois a Igreja teve que se defrontar com Márcion, um herege que
rejeitava a encarnação de Jesus, rejeitando também o Antigo Testamento e muitos
livros do Novo Testamento, aceitando apenas o evangelho de João e algumas
cartas – e foi justamente o evangelho de João a ferramenta crucial para deter
estes gnósticos.
[2] en arxh – um termo filosófico comum entre os gregos para
designar a causa primeira, aquilo que dá origem a tudo o mais. Dizer que Cristo
já estava no principio equivale a
dizer que ele dá origem a tudo o mais, é a causa não causada, o criador
incriado.
[4] O verbo era Deus é uma
construção verbal aceitável, como também é aceitável dizer que o verbo era
divino, isto é, usufruía de natureza divina (Fp 2.6).
[5] Carta de Calvino aos magistrados de Berna, 1555 (Selected Works of
John Calvin: Tracts and Letters, editadas por Jules Bonnet, traduzida para
o inglês por David Constable; Grand Rapids: Baker Book House, 1983, 454
páginas; reprodução de Letters of John Calvin (Philadelphia:
Presbyterian Board of Publication, 1858).
[6]
Carta de Calvino ao pastor da cidade de Berna, Jean Haller, de 2 de janeiro de
1551 (Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, editadas por
Jules Bonnet, traduzida para o inglês por David Constable; Grand Rapids: Baker
Book House, 1983, 454 páginas; reprodução de Letters of John Calvin (Philadelphia:
Presbyterian Board of Publication, 1858).
[7]
John Calvin, “To the Seigneurs of Berne”, John Calvin Collection (CD-ROOM),
(Albany, OR; Ages Software, 1998, nº 395, p. 163.
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