A linda história de Rute traz embutida a história de Noemi e sua família, Elimeleque (cujo nome significa Deus é meu rei), Malom e Quiliom (ambos os nomes são cananeus, significando, respectivamente, fraqueza, doença e definhamento, tristeza porque provavelmente nasceram no tempo de provação, de fome em Belém). Esta história está ambientada num período nebuloso e turbulento da história do povo de Deus. O período dos juízes, cuja principal característica era que cada um fazia o que bem lhe parecia (Jz 21:25 - Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto). É, também, um período de julgamento sobre este povo que costumeiramente se desviava do caminho do Senhor (Jz 3:7 - Os filhos de Israel fizeram o que era mau perante o SENHOR e se esqueceram do SENHOR, seu Deus; e renderam culto aos baalins e ao poste-ídolo).
Os dias de Noemi eram do tipo “piores tempos”. Tratava-se de uma época terrível na qual perdurava a anarquia e as constantes guerras.
Desta forma, o período relatado no inicio do livro de Rute reflete um período de julgamento, de disciplina de Deus sobre Israel (veja Lv 26.14-39; vd. 26.20 - Debalde se gastará a vossa força; a vossa terra não dará a sua messe, e as árvores da terra não darão o seu fruto).
É no intuito de fugir ao julgamento do Senhor que Elimeleque conduz sua família para longe de Belém, da terra que o Senhor lhes deu - e vão em direção à terra de Moabe que desde o princípio os queria amaldiçoados (Nm 22.5-6 - Enviou ele mensageiros a Balaão, filho de Beor, a Petor, que está junto ao rio Eufrates, na terra dos filhos do seu povo, a chamá-lo, dizendo: Eis que um povo saiu do Egito, cobre a face da terra e está morando defronte de mim. Vem, pois, agora, rogo-te, amaldiçoa-me este povo, pois é mais poderoso do que eu; para ver se o poderei ferir e lançar fora da terra, porque sei que a quem tu abençoares será abençoado, e a quem tu amaldiçoares será amaldiçoado), rejeitados por Deus (Nm 25.1-3 - Habitando Israel em Sitim, começou o povo a prostituir-se com as filhas dos moabitas. Estas convidaram o povo aos sacrifícios dos seus deuses; e o povo comeu e inclinou-se aos deuses delas. Juntando-se Israel a Baal-Peor, a ira do SENHOR se acendeu contra Israel) oprimidos e destruídos (Jz 3:12 - Tornaram, então, os filhos de Israel a fazer o que era mau perante o SENHOR; mas o SENHOR deu poder a Eglom, rei dos moabitas, contra Israel, porquanto fizeram o que era mau perante o SENHOR).
Assim, a história de Noemi não é a história de uma busca por melhores condições de vida, mas a tentativa de ficar fora do alcance do braço do Senhor (Sl 139:7 - Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face?).
Noemi era apenas uma esposa, uma mulher israelita que acompanhou seu marido e viveu num período em que seu povo não andava nos caminhos do Senhor, a ponto de Elimeleque não ver problema algum em morar entre os moabitas e tomar esposas para seus filhos de entre aquele povo idólatra (Ed 9:12 - Por isso, não dareis as vossas filhas a seus filhos, e suas filhas não tomareis para os vossos filhos, e jamais procurareis a paz e o bem desses povos; para que sejais fortes, e comais o melhor da terra, e a deixeis por herança a vossos filhos, para sempre).
EM BUSCA DO QUE NÃO DEVERIA SER BUSCADO
O mesmo texto que registra a promessa de Deus de lançar sobre o seu povo a sua ira em caso de desobediência diz-lhes o que eles deveriam buscar - e não era uma nova terra.
40 Mas, se confessarem a sua iniqüidade e a iniqüidade de seus pais, na infidelidade que cometeram contra mim, como também confessarem que andaram contrariamente para comigo, 41 pelo que também fui contrário a eles e os fiz entrar na terra dos seus inimigos; se o seu coração incircunciso se humilhar, e tomarem eles por bem o castigo da sua iniqüidade, 42 então, me lembrarei da minha aliança com Jacó, e também da minha aliança com Isaque, e também da minha aliança com Abraão, e da terra me lembrarei.
Lv 26:40-42
Eles precisavam era de arrependimento, de confissão de pecados, de buscar a Deus e não aos moabitas. Durante os dias de fome, previstas por Deus ao estabelecer o pacto com Israel, aceitas por Israel ao entrarem na terra prometida mesmo depois de serem advertidos por Josué (Js 24.19-21 - Então, Josué disse ao povo: Não podereis servir ao SENHOR, porquanto é Deus santo, Deus zeloso, que não perdoará a vossa transgressão nem os vossos pecados. Se deixardes o SENHOR e servirdes a deuses estranhos, então, se voltará, e vos fará mal, e vos consumirá, depois de vos ter feito bem. Então, disse o povo a Josué: Não; antes, serviremos ao SENHOR).
Elimeleque cometeu o erro de tentar fugir à disciplina de Deus que, como pai amoroso, busca trazer os seus de volta não apenas à obediência mas à santidade (Hb 12:10-11 - Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade. Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça). Israel havia pecado e precisava ser disciplinado - e Deus é fiel, mesmo quando somos infiéis (II Tm 2:13 - ...se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo), em todas as suas promessas (Lc 1:37 - Porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas).
Quais os erros de Elimeleque que Noemi testemunhou a ponto de, tendo saído de Israel fazendo jus ao nome que tinha (Noemi, que significa ditosa, feliz, agradável) e, ao retornar, pedir para ser chamada de Mara, que significa amargor?
I. FIZERAM ALIANÇA COM OS MOABITAS
Abstém-te de fazer aliança com os moradores da terra para onde vais, para que te não sejam por cilada.
Ex 34.12
O livro de Êxodo trás instruções claras sobre a atitude de um hebreu para com os povos da terra - especialmente os moabitas que intentaram amaldiçoá-los e, orientados por Balaão, sabiam quais seriam os seus pontos fracos. Eles não deveriam ser combatidos pela guerra, mas minados em tempos de paz com alianças.
Eles não conseguiriam morar, plantar, colher, negociar em terras moabitas se não fizessem algum tipo de aliança ou acordo com os moabitas - e é bom lembrar que as alianças antigas eram feitas na forma de pacto religioso, através de uma oferenda, do sacrifício de um animal ou de uma pessoa. Talvez como Ló em Sodoma tenham se apresentado como imigrantes de paz, desejosos apenas de ter uma nova pátria já que a sua não lhes permitia sobreviver.
II. NÃO SE OPUSERAM AO CULTO IDÓLATRA MOABITA
Mas derribareis os seus altares, quebrareis as suas colunas e cortareis os seus postes-ídolos (porque não adorarás outro deus; pois o nome do SENHOR é Zeloso; sim, Deus zeloso é ele); para que não faças aliança com os moradores da terra; não suceda que, em se prostituindo eles com os deuses e lhes sacrificando, alguém te convide, e comas dos seus sacrifícios.
Ex 34.13-15
Era impossível aos imigrantes hebreus se colocarem como opositores aos cultos idólatras moabitas. Se eles estavam aceitando o culto aos baalins em suas terras, edificando altares no meio de suas cidades, então, como se opor à prática dos mesmos nas terras dos moabitas? Como anunciar a fé no Deus vivo, verdadeiro, que odeia a idolatria habitando de favor entre eles? Como denunciar Quemos, Moloch, Ishtar ou os baalins de cada cidade como inúteis, vãos e perniciosos e demoníacos se ele já havia aceito sacrificar aos mesmos?
É o mesmo dilema que enfrenta o cristão que está de tal forma identificado com o estilo de vida que o cerca, com as mesmas práticas. Elimeleque fora aceito entre os moabitas porque aceitara algumas de suas práticas. Havia se tornado um como eles, embora não pudesse se tornar um deles.
III. APARENTARAM-SE COM OS MOABITAS
...e tomes mulheres das suas filhas para os teus filhos, e suas filhas, prostituindo-se com seus deuses, façam que também os teus filhos se prostituam com seus deuses.
Ex 34.16
Anos à frente Salomão faria uso da prática de casar-se com as filhas dos reis e príncipes das redondezas e estabelecer com eles alianças familiares, econômicas e militares. Mas esta prática foi adotada pelos filhos de Noemi, que casaram-se com duas moabitas, Orfa e Rute. Não pretendo traçar aqui o perfil de nenhuma delas, apenas lembrar que eram moabitas, politeístas, adoradoras de ídolos pagãos e, para que seus pais as entregassem por esposas, eles tiveram que se prostituir com os deuses das famílias delas, o que provavelmente seria ensinado aos seus filhos se eles tivessem nascido, como aconteceu mais tarde, entre os judeus no período pós-exílico.
Dez anos depois, sem que gerassem filhos, Malom e Quiliom falecem e Noemi, que já havia perdido o esposo, agora tem que defrontar-se com a viuvez e a terrível escolha de ser uma viúva entre os pagãos ou entre seu próprio povo, descobrindo que é melhor sofrer nas mãos de Deus, dentro do plano de Deus do que entregue a sofrimentos de qualquer outra natureza (I Cr 21:13 - Então, disse Davi a Gade: Estou em grande angústia; caia eu, pois, nas mãos do SENHOR, porque são muitíssimas as suas misericórdias, mas nas mãos dos homens não caia eu).
O DIFÍCIL RETORNO
Aquela que saíra de Israel, da terra que Deus dera a seus pais, da cidade de Belém (casa de pão) em busca de alimento e prosperidade no meio pagão agora vê-se obrigada a retornar com duas jovens moabitas, atestando a completa derrocada que lhe sucedera. Como sustentar estas jovens, tanto econômica quanto socialmente numa terra que já olharia para ela com algum grau de desdém? Se seus filhos fossem vivos, se houvesse netos, eles poderiam tomar posse das terras da família, mas uma mulher não poderia fazer isso. Assim, para facilitar a sua vida e a das moabitas ela se despede das noras, sendo surpreendida por Rute que havia, de alguma forma e pela graça de Deus, compreendido que o Deus de Israel era verdadeiro Deus (Rt 1:16 - Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te; porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus).
Ao ser reconhecida, mesmo depois de 10 anos e muito sofrimento, que envelhece muito mais, provavelmente com cerca de 50 anos, as mulheres se perguntavam num misto de piedade e curiosidade se ela era mesmo aquela que as deixara (Rt 1:19 - Então, ambas se foram, até que chegaram a Belém; sucedeu que, ao chegarem ali, toda a cidade se comoveu por causa delas, e as mulheres diziam: Não é esta Noemi?).
Noemi responde com gravidade, com a consciência de ter ido buscar pão longe da casa de pão, de ter ido buscar água em cisternas rotas (Jr 2:13 - Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas) e uma preciosa lição de vida para os hebreus - na terra de Deus, mesmo com dificuldades, ela tinha tudo o que uma mulher podia querer, mas, por causa da desobediência e das escolhas erradas de seu esposo ela foi amargurada e empobrecida - sem terra, sem marido, sem filhos, sem herança (Rt 1:20-21 - Porém ela lhes dizia: Não me chameis Noemi; chamai-me Mara, porque grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso. Ditosa eu parti, porém o SENHOR me fez voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o SENHOR se manifestou contra mim e o Todo-Poderoso me tem afligido?).
Ela percebeu e ensinou ao povo que seu sofrimento era obra de Deus, pois ela, seu marido e filhos, bem como o povo de Israel, haviam abandonado ao Senhor seu Deus e, por isso, deveriam esperar que ele os disciplinasse com justiça. Assim como um dia Ló aprendeu ao sair da companhia de Abraão com muito rebanho e ficar apenas com duas filhas ímpias, também Noemi nos instrui a não buscar satisfação nas campinas de Moabe, pois as concupiscência do mundo passam (I Tm 6:9 - Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição).
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