INTRODUÇÃO
Dentre as estratégias propostas na “Conferência das Cinzas para uma
Chama” chamou-me a atenção a estratégia que estabelece a primazia da palavra de
Deus. E não poderia ser diferente, pois é pela Palavra que a Igreja se
estabelece, é firmada e permanece – sem ela, a queda é inevitável. A Igreja afirma de maneira oficial que tudo o que ela crê tem como base o
registro da vontade de Deus em sua Palavra, a bíblia, rejeitando tanto o que é contra
a bíblia como, também, o que é fora da bíblia. Afirmamos que a Igreja deve
considerar a sua bíblia como fonte absoluta e não obsoleta de autoridade para o
seu crer. Mas, também na Igreja (não é de estranhar que o mundo a rejeite) vemos a Palavra
ser rebatida, rejeitada com argumentos pseudo científicos, filosóficos,
existencialistas, que afirmam que o que está escrito não tem nada a ver com as
necessidades e com a realidade presente quando suas assertivas não são convenientes
ao homem pretensamente mais evoluído do sec. XXI, que relega a bíblia a uma
estranha e passada era, cujos textos só são aceitos se concordarem com as aspirações
da atualidade do momento vivido pela Igreja segundo sua perspectiva – e, desta
forma desconsiderando sua vivacidade e eficácia intrínseca. Outra maneira de dizer isso é que a Igreja que está moribunda decide o
que na bíblia é aceitável, ao invés de recebe-la como orientação para
corrigir-se, e finalmente, ser vivificada e tornar-se aceitável diante de seu
autor, Deus. Quando a bíblia diz “isto não pode” a Igreja deve entender que é Deus
quem está dizendo que não pode, mas ela tem preferido ler “isso não podia”, mas
hoje todo mundo aceita. Lamentavelmente, esta opinião tem se disseminado, em prejuízo
da autoridade das Escrituras e, principalmente, trazendo enorme prejuízo para a
Igreja que perde seu referencial e sua fonte de vida. Por mais óbvio que possa ser, é a pregação da Palavra que institui a
presença da Igreja de Cristo em algum lugar, uma vez que o próprio afirmou que
a função dos discípulos era, primordialmente, anunciar a sua Palavra, serem
suas testemunhas, fazerem discípulos em todos os cantos – e estes discípulos
seriam integrados à sua Igreja como novas testemunhas até que viesse,
finalmente, a consumação dos séculos. Porque a pregação da Palavra é essencial? Porque a fé vem pelo ouvir a
Palavra de Deus (Rm 10.17) – e
assim, se em algum lugar houver um grupo que se denomine cristão mas que não
honre e pregue o evangelho de Cristo, não merece ser Igreja porque não crê no
Cristo "segundo as Escrituras". Sem o evangelho não pode haver
verdadeiros cristãos; sem verdadeiros cristãos não pode haver nenhuma Igreja –
ao menos não uma que possa ser qualificada como a verdadeira Igreja de Cristo. Por outro lado, se a pregação da Palavra é o meio para se instituir a
Igreja, também é o grande meio para a manutenção da mesma, habilitando-a a ser
a mãe dos fiéis (ver Jo 8.31-32, 47;
I Jo 4.1-3; II Jo 9). Não estamos aqui a exigir uniformidade teológica, mas a
postular a essencialidade da pregação da Palavra, com fidelidade, conforme
escreve Sproul:
"Embora as igrejas difiram em detalhes
teológicos, e em níveis de pureza doutrinária, toda verdadeira Igreja deve
afirmar aquilo que é essencial à fé cristã. Assim, uma Igreja é falsa ou
apóstata quando nega uma doutrina essencial da fé cristã, como a divindade de
Cristo, a triunidade de Deus, a justificação pela fé, a expiação vicária de
Jesus Cristo, ou outras doutrinas essenciais à salvação" (SPROUL, Op.Cit.).
Somente com fidelidade e centrada na Palavra, elemento essencial para a
sua manutenção e até mesmo recuperação de seu vigor, que a Igreja anuncia a
salvação graciosa mediante arrependimento e fé em Jesus Cristo e pode conduzir
pecadores ao arrependimento e a Cristo. Calvino, falando sobre a Igreja e o
ministério da Palavra, diz que:
"...em primeiro lugar, onde quer que subsista ele
íntegro e ilibado, de nenhumas falhas ou fraquezas morais é ela impedida de
suster o nome de Igreja; em segundo lugar, esse mesmo ministério viciado não é
de erros os mais triviais assim que legítimo se não estime" (...)"Na
verdade, tão logo na cidadela da religião irrompeu a falsidade, transtornada
foi a suma da doutrina necessária, derruiu-se o uso dos sacramentos, segue-se,
incontestavelmente, a morte da Igreja". (CALVINO, Op.Cit., p. 30).
A REJEIÇÃO DA PALAVRA DE DEUS
Vivemos tempos em que a centralidade da Palavra tem sido rejeitada pela
Igreja – aliás, muitas Igrejas rejeitam até mesmo os termos comumente usados
pelas Escrituras para denominá-las, como Igreja ou congregação, adotando termos
como comunidade, associação, sociedade, grupos, centros, células ou clubes
bíblicos. A rejeição do termo é apenas um sintoma da rejeição da Palavra. Isto
não é um fenômeno novo. Já aconteceu na Igreja medieval (salvo exceções que se destacam
confirmando esta verdade), foi assim também no período em que o humanismo,
modernismo, liberalismo e a neo-ortodoxia pretenderam ter respostas alienadas e
alienantes da Palavra. As pessoas não têm sido mais chamadas a ouvirem a voz do bom pastor (Jo 10.27), mas a se adequarem a um
estilo de vida que parece cristianismo, porem sem aquilo que afirmam ser as
“amarras da letra” e, então, são instados a fazerem, dentro de suas
possibilidades, um caminho de imitação daquilo que julgam ser as atitudes do
"homem de Nazaré" – mesmo que em franca desobediência às palavras do
Cristo das Escrituras.
A NECESSIDADE DA CENTRALIDADE DA PREGAÇÃO
Apesar de tamanha desconsideração pela pregação, nenhum verdadeiro
cristão ousaria descartar a necessidade da pregação da Palavra – ainda que haja
entusiastas bem intencionados (e mal instruídos) que a coloquem como um mero
acessório em suas estratégias de marketing às quais chamam de evangelismo. A despeito deste erro, devemos considerar o pregador como um arauto do
Deus das escrituras, e este deve buscar anunciar o que o Senhor tem dito,
apenas isso, como fez ao afirmar: "...o que o Senhor me disser, isso
falarei" (I Rs 22.14). Qualquer
coisa menos que isso não se pode considerar pregação – e muito menos pregação
cristã (ROBINSON, 1990, p. 14). Um compromisso menor do que o de proclamar o conselho de Deus, e todo o
conselho de Deus desqualifica o pregador e a mensagem que ouse anunciar. Uma
Igreja que queira algo menos que a Palavra de Deus não está se comportando como
Igreja de Deus. D.M. Lloyd-Jones diz que a decadência da Igreja se dá pelo
abandono da centralidade da Palavra:
"Não é de surpreender que a Igreja esteja na condição
em que está atualmente. E não é de surpreender que o mundo esteja na situação
em que está, quando a nossa mensagem central (o sangue de Cristo) está
escondida" (LLOYD-JONES, 1993, p. 53).
Uma das principais ênfases de Calvino contra o romanismo era o fato de
que, ali, a bíblia não tinha lugar, soterrada sob uma avalancha de tradições,
opiniões humanas e conciliábulos políticos:
"Em vez do ministério da Palavra aí reina um
regime degenerado e cheio de falsidades, que em parte extingue a pura luz da
verdade, em parte o sufoca; no lugar da Ceia do Senhor introduziu-se o mais
hediondo sacrilégio; o culto de Deus foi deformado por variada e intolerável
número de superstições; a doutrina, à parte da qual não subsiste cristianismo,
foi inteira sepultada e rejeitada; as reuniões públicas reduzidas a escolas de
idolatria e impiedade. (...) De igual modo, hoje nos importunam os romanistas e
aos ignaros testificam com o nome da Igreja, quando sejam capitais adversários
de Cristo" (CALVINO, Livro IV).
A PREGAÇÃO COMO FERRAMENTA DE REVITALIZAÇÃO
Não há dúvida que muitas áreas da Igreja precisam ser repensadas e
revitalizadas. Seu método de ensino, sua comunhão, sua administração – mas nada
disso fará dela uma Igreja verdadeiramente vivificada se não for pelo Espírito
do Senhor através da sua Palavra.
A PREGAÇÃO
Os ministros precisam priorizar a pregação fiel da Palavra de Deus no
poder do Espírito Santo e não a leitura ou exposição de belas (e muitas vezes
vazias de significado e poder) homilias, recheadas de técnicas, floreios,
marketing e psicologia.
O QUE DEVE SER PREGADO
A Igreja precisa clamar para que a Palavra de Deus seja pregada com
fidelidade e que o ensino ministrado seja aplicável de maneira contextualizada
– não confundir com contextualização da mensagem da Igreja, numa espécie de
abominável sincretismo, em detrimento da fidelidade à Palavra. Não há duvida que isto é difícil em dias de politicamente correto, ainda
mais que não ser politicamente correto pode implicar em altos custos, inclusive
eclesiásticos. A Igreja não precisa ser politicamente correta. O que precisa
ser correta é a pregação da Palavra, que não esconde a verdade, antes coloca-a
claramente aos ouvintes (mesmo que estes não queiram ser confrontados em seus
pecados).
O PREGADOR DEVE PREGAR A VERDADE COM FIDELIDADE
Assim, o ministro deve ser
submisso à vontade de Deus, falando a Palavra de Deus. Pregar somente o que
Deus quer significa confiar que Deus opera, pela Palavra, através do Espírito
Santo, mesmo no mais impenitente pecador. O próprio apóstolo Paulo registra, em
sua experiência, que mesmo o "maior dos pecadores" pode ser alcançado
pela Palavra de Deus – para servir, inclusive, de modelo aos demais crentes (I Tm 1.15-16). Entretanto, não cabe ao
ministro forçar a eficiência da pregação através de gestos teatrais,
melodramáticos ou cômicos. A tradição reformada nos lembra, acertadamente, que
o único intérprete fiel da Palavra de Deus é o Espírito Santo – e é ele quem
aplica a graciosa Palavra de Deus ao coração dos cristãos, levando-os a
praticá-la e não só ouvi-la (Tg 1.22). Esta observação se faz
necessária por causa das diversas pressões que são colocadas sobre os ombros
dos ministros – especialmente a pressão pela apresentação de números vistosos
de aumento do número de membros. Obviamente não defendemos que deve-se
priorizar a estagnação e não o crescimento. Pelo contrário, uma Igreja sadia,
uma Igreja que é alimentada por uma palavra sadia tende a crescer (Ef 4.16). Em Esdras, como em Micaías,
temos um modelo do que deve ser o pregador: alguém que tem o seu coração
disposto a compreender, cumprir e ensinar a palavra do Senhor ao povo do Senhor
(Ed 7.10). Muito do sofrimento de
Israel se deu porque os responsáveis pelo ensino da Palavra se esquivaram de
fazê-lo, com trágicas consequências para todo o povo (Os 4.6).
A RECEPÇÃO
Todavia, lembremos que a Igreja não é somente o pregador, a
Igreja é o todo dos fiéis, e estes também tem sua responsabilidade, acolhendo de
maneira mansa e obediente esta palavra fiel pregada na linha apostólica e com
sinceridade porque o assunto de que trata é nada menos que a salvação de almas
(Tg 1.21). Assim, coma pregação da Palavra temos também que tratar do
acolhimento da Palavra de Deus. Se a comunidade não acolhe a pregação da
Palavra de Deus, é porque esta já está suficientemente afastada do Senhor para
poder ouvir-lhe a voz. Devemos insistir que a pregação da Palavra de Deus
envolve o falar e o ouvir, não somente quanto à comunicação, pois ouvir a voz
de Deus significa praticar o que ele está dizendo. A comunicação de Deus aos homens é, sempre, de caráter
prático e proposicional. Neste sentido, diz-nos A.W. Blackwood (ELWELL, p. 171,
grifo meu): "A pregação é a verdade divina pronunciada por uma
personalidade escolhida, a fim de satisfazer a necessidade humana". E,
ainda,
"...a pregação significa interpretar a vida hoje,
à luz das Escrituras, de modo que as necessidades do ouvinte sejam satisfeitas
agora, e o ouvinte seja orientado na
realização da vontade de Deus amanhã".
COMO A IGREJA DEVE RECEBER A PALAVRA
A Igreja, se realmente é a
Igreja de Cristo, deve (e desejará) ser submissa à Palavra do seu Senhor.
Cristo diz-nos que as suas ovelhas ouvem a sua voz (Jo 10.27), obedecem (Jo
15.14) e ensinam (Mt 28.19-20).
Certamente que a verdadeira Igreja de Cristo ouve, isto é, atende, quando a
Palavra de Cristo é pregada, e o oposto é duplamente verdadeiro: ela denuncia
abertamente quando falsos conceitos, embora belos, sejam proclamados de seus
púlpitos. Quando um grupo de pessoas,
mesmo chamando-se de Igreja, recebe alegre e constantemente qualquer palavra
que não seja a palavra de Cristo está, incontestavelmente, admitindo que não é
a Igreja de Cristo, pois qualquer coisa, qualquer mentira, qualquer engodo,
qualquer enganação é alegremente ouvida por aqueles que não são de Cristo. A conclusão a que chegamos,
neste ponto, embora triste, é a de que é uma verdade inescapável que a Igreja
contemporânea (com notáveis e gratas exceções) não tem interesse pelo ensino da
Palavra de Deus, facilmente cedendo às pressões internas por uma adesão aos
princípios, métodos e mandamentos do mundo, em detrimento da obediência à
Palavra de Deus. É preciso ser realmente temente a Deus para
resistir. É motivo de muita gratidão a Deus o fato de que há ainda muitos ministros
fiéis a proclamar e, necessário dizer, crentes fiéis, que lutam para que a
pregação da Palavra não seja obliterada pelas exigências do mundo
contemporâneo, pós moderno, que prega e exige um relativismo, tanto moral
quanto espiritual, mas que ao mesmo tempo tenta impor um abandono dos
pressupostos bíblicos. Assim como a pregação da Palavra é um dever central dos ministros,
acolhê-la obedientemente é uma obrigação da igreja – uma Igreja que não acolhe
a pregação da Palavra de Deus é uma Igreja doente ou, pior, uma sinagoga de
satanás, suficientemente afastada do Senhor e tornada incapaz de ouvir-lhe a
voz. A pregação da Palavra lembra-nos que deve haver alegre submissão de ambos
os lados. De nada adianta o ministro cobrar de seus ouvintes submissão à
vontade de Deus – ou ao que ele ensina de púlpito – se esta não é a verdade de
Deus. Deus não vai agir no coração dos crentes, capacitando-os à obedecer a uma
mentira, mesmo que uma mentira eficiente e repetidamente exposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, somos obrigados a concluir que todas as congregações que, embora
reivindiquem para si o título de cristãs, mas que tenham abandonado a
centralidade das Escrituras ou merecem ser justamente chamadas de falsas
igrejas, e, por isso, abandonadas ou, então, precisam desesperadamente de um
trabalho de despertamento e revitalização para retornarem às Escrituras, recebendo
pela graça de Deus uma nova injunção de vida. Como revitalizar uma Igreja assim? Sem duvida, a única forma de trazer
vida a uma Igreja morta é a Palavra de Deus. Isto significa que, de imediato, há
uma barreira a demolir – numa Igreja morta já se instaurou uma cultura de não aceitação
da Palavra de Deus, de rejeição do único meio de cura. Mas, mesmo assim, o
pregador não deve buscar substitutos, não deve desistir, lembrando que a Palavra
de Deus afirma que ela é viva e eficaz (Hb
4.12), produz resultados (Is 55.11)
e é aplicada ao coração dos pecadores pelo poder do Espírito: “Prosseguiu ele e
me disse: Esta é a palavra do SENHOR a Zorobabel: Não por força nem por poder,
mas pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos” (Zc 4:6) e não por força, estratégias, imposições eclesiásticas ou
quaisquer outras formas sob o controle do homem.
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