Na Igreja coríntia estava presente a ideia de que a vida pode ser dividida em setores: o terreno, passageiro, mundano, material, e o celeste, espiritual, eterno. O dualismo pagão estava presente na mentalidade coríntia. Era normal acreditar que a matéria era uma coisa ruim, passageira, inferior, enquanto que o espírito era uma centelha de Deus, portanto superior e divina.
Os dualistas acreditavam que o corpo era somente a prisão do espírito, e a isto reagiam de maneira desregrada [já que o corpo não vale nada, então não preciso cuidar dele], entregando-se a excessos, afirmando que todas as coisas eram lícitas – e Paulo responde que nem por isso eram convenientes [I Co 6.12: Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas] ou, então, recusavam-se a participar das alegrias da vida, como, por exemplo, o casamento [I Co 7.1: Quanto ao que me escrevestes, é bom que o homem não toque em mulher] em um ascetismo que, aos olhos de Deus, não resulta em proveito algum [Cl 2.20-23: Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade].
Com base nestas ideias os coríntios entendiam ser lícito recorrer aos mundanos para resolver questões mundanas – e a resposta de Paulo é que isto lhes era vedado e, pior, que eles deveriam cuidar de resolver suas dificuldades internamente, especialmente pelo fato de que aos cristãos ser dado o poder para julgar inclusive os anjos [Mt 19: 28-30: Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe ou mulher, ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais e herdará a vida eterna. Porém muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros].
Se Paulo os repreende de maneira enérgica e irônica, por se julgarem sábios [I Co 4.10: Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo; nós, fracos, e vós, fortes; vós, nobres, e nós, desprezíveis], volta ao tema da sabedoria agora dizendo que eles tem condições para constituírem seu próprio tribunal, e julgarem todos os assuntos que envolvam cristãos. Eles não deveriam constituir como juiz sobre a Igreja aqueles que não tem qualquer aceitação na Igreja. Paulo afirma que os que não tem aceitação na Igreja não devem ser honrados na Igreja, da mesma maneira que o mundo não honra os cristãos [I Co 1.28: ...e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas (exouqhene=menouj), e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são...].
Se os coríntios eram realmente sábios, então deveriam saber como resolver os seus problemas internos, sem recorrer aos mundanos. Entre eles havia os que exaltavam Paulo, Apolo e Pedro, e até mesmo Jesus. A pergunta de Paulo é: onde está o resultado dos ensinos destes mestres na vida de vocês? A constatação de Paulo, expressa no capítulo 3, é lembrada aqui, embora de passagem [I Co 3.2-3: Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais. Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e andais segundo o homem?].
Toda a sabedoria que eles afirmavam ter não conseguiu produzir nem um sábio sequer, a ponto de precisar ir buscar solucionar os problemas sujeitando-se ao padrão mais baixo, o do mundo. Cremos que havia pessoas educadas e cultas em Corinto, mas o fato é que nenhum entre eles era reconhecido por sua conduta cristã, por seu procedimento correto. Todos estavam contaminados, em maior ou menor grau, pelo partidarismo vigente na comunidade, correndo um sério risco de autodestruição [Gl 5.15: Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos].
E este risco era real na medida em que já não havia sequer uma pessoa que fosse considerada digna de respeito por todos naquela Igreja. Nem mesmo os apóstolos gozavam de respeito entre eles. A própria Palavra de Deus era esquecida quando os interesses pessoais, quando o pensamento do grupo era ameaçado. Um exemplo é o caso do incesto não tratado. Outro é quando trata das diferenças entre irmãos. A orientação bíblica é muito clara [Mt 18.15: Se teu irmão pecar contra ti, vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão]. Entendo que todo pecado contra uma parte do corpo é um pecado contra todo o corpo, isto é, todo pecado cometido contra um membro da Igreja é um pecado contra todo o corpo – mesmo quando é cometido por membro da Igreja, o que neste caso é um agravante, não um atenuante.
Uma das doenças mais difíceis de serem tratadas é o câncer, justamente porque ela não é causada por um invasor [ainda que desencadeada por fatores externos], mas por uma degeneração de células do próprio organismo.
Amados, não há possibilidade de encontrar justiça espiritual em tribunais mundanos, aliás, já é um pecado recorrer a eles contra irmãos causando vergonha para a Igreja do Senhor, que é perfeitamente capaz de resolver suas dificuldades internas, ainda que envolvam assuntos que extrapolem as fronteiras santas.
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