Escandaliza ao apóstolo o fato de justos estarem sendo submetidos a julgamento por parte de injustos – mas o escândalo maior se dá pelo fato de que são os próprios cristãos os autores de tais processos. Ser perseguido por causa da fé não era estranho a Paulo nem a muitos coríntios, como Pedro e Apolo, a quem eles conheciam bem. Eles, entretanto, não conheciam esta realidade. Em Corinto ainda não tinha havido qualquer perseguição por parte dos pagãos. Eles não sabiam o que era ser perseguido por causa da fé – logo, podiam pensar que haveria qualquer tipo de justiça nos tribunais que não os perseguia.
Do ponto de vista bíblico há uma diferença fundamental entre os que foram salvos em Cristo Jesus e os que rejeitaram a oferta de salvação. Os primeiros tiveram o preço de seus pecados pagos, totalmente pagos, foram justificados, não devem mais nada [Cl 2.14: ... tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu- o inteiramente, encravando-o na cruz], o escrito da dívida que havia contra eles foi totalmente cancelado na cruz do calvário [João 19.30: Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito].
Já os que rejeitaram a oferta da graça não apenas não obtiveram essa graça mas continuam acumulando dívidas, sua injustiça apenas aumenta. Esta é uma questão espiritual e moral que foi definitivamente resolvida. Entretanto, há a questão prática. Constantemente vemos ímpios, não justificados, agirem melhor, mais ordeira e honestamente que muitos que foram "santificados em Cristo Jesus" mas que ainda não estão atendendo devidamente ao "chamado para serem santos" [I Co 1.2: ...à igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados para ser santos, com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso].
Podemos imaginar que também isto faz parte da didática divina, mas o que é fato, e para tristeza nossa e de Paulo, é que muitas vezes os ímpios podem agir, e efetivamente agem, com maior senso de justiça entre si que muitos cristãos. Um caso emblemático e até lendário é o cuidado que os membros da fraternidade maçônica costumam propagar que tem entre si, embora eu conheça casos reais onde esta fraternidade não tenha se consumado na prática.
Paulo não tinha dúvida alguma que um juiz não justificado podia julgar retamente segundo as leis romanas. Entretanto, há uma lei maior, superior, à qual os cristãos devem plena atenção e sujeição, e desta lei os injustos não participam, não tem conhecimento e tampouco desejo de viver por ela. Assim como a Igreja não tem jurisdição sobre os injustos, do mesmo modo não deveria submeter-se a seu julgamento, especialmente nos seus assuntos internos, entre membros do mesmo reino celeste, partes de uma mesma família, ainda que fosse um assunto material – não devemos usar o termo "mundanos" porque, para os espirituais, tudo o que fazem é espiritual.
É possível que, nos tribunais romanos, os cristãos obtivessem um julgamento correto segundo a jurisprudência romana, mas o fato é que eles não deveriam sequer aparecer por lá, especialmente em demanda contra os próprios cristãos. Sabiam ser necessário agir como Cristo agiu, suportando a injúria [Hb 12.3: Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma] mas, paradoxalmente, estavam agindo de maneira exatamente oposta, se acusando mutuamente, num triste espetáculo aos olhos dos gentios, para os tais uma comédia, mas, para os cristãos, nada menos que uma tragédia. Uma tragédia moral, social e espiritual.
Como agência proclamadora das boas novas a Igreja estava sem rumo, sem poder e sem crédito. Afinal, como proclamar a unidade das pessoas de todas as nações em Cristo Jesus num tribunal a decidir uma disputa entre aqueles que já teriam experimentado esta unidade? É por isso que Paulo usa uma expressão fortíssima no verso 7 para dizer que a Igreja estava completamente arruinada - [v. 7: O só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros]. Importa lembrar que Paulo já havia afirmado que não ficaria sem castigo quem destruísse a obra do Senhor, o santuário do Espírito, o corpo místico de Cristo: o assunto, lá e cá, é um só: a unidade da Igreja.
O problema havia ultrapassado os muros santos, havia ultrapassado as fronteiras da Igreja, e isto era vergonhoso e lamentável, para toda a Igreja, pois quando um membro sofre todo o corpo sofre.
Como é o costume de Paulo, ele denuncia o pecado, mostra suas consequências e estabelece parâmetros parra a cessação do mal e consequente restauração do dano causado.
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