Daniel não podia deixar o palácio. Ele não podia voltar para Jerusalém. Ele não podia fugir ao seu destino. Sofriam, literalmente, na carne, a ignomínia de terem sido tornado escravos – foram castrados. Uma antiga canção exortava os crentes a florescerem onde Deus os plantasse [se alguém conhecê-la, pode me informar que serei grato, lembro apenas de duas frases: creia o crescimento que vem de Deus, floresça onde ele te plantou]. Da mesma maneira que a criança na casa de Naamã [II Rs 5.2 – Saíram tropas da Síria, e da terra de Israel levaram cativa uma menina, que ficou ao serviço da mulher de Naamã] também os hebreus teriam que permanecer na casa do rei, que os entregou aos cuidados do chefe dos eunucos [Aspenaz, provavelmente um eunuco cativo, como os demais] com rigorosas determinações sobre sua educação e alimentação [Dn 1.3-6 - Disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, tanto da linhagem real como dos nobres, jovens sem nenhum defeito, de boa aparência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, versados no conhecimento e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei e lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus. Determinou-lhes o rei a ração diária, das finas iguarias da mesa real e do vinho que ele bebia, e que assim fossem mantidos por três anos, ao cabo dos quais assistiriam diante do rei]. Até mesmo os seus nomes são mudados, numa tentativa de aculturação mais rápida [Dn 1.7 – O chefe dos eunucos lhes pôs outros nomes, a saber: a Daniel, o de Beltessazar; a Hananias, o de Sadraque; a Misael, o de Mesaque; e a Azarias, o de Abede-Nego]. Serem chamados por seus nomes poderia ajuda-los a se lembrar de Jerusalém – novos nomes no mínimo não evocariam saudades. Mas, tendo os nomes mudados, sua natureza, sua essência não mudou. O nome indicava identidade, mas aqueles jovens sabiam quem eles eram.
Por não perderem sua identidade no meio da multidão palaciana, Daniel tomou uma decisão inesperada, provavelmente jamais vista na coorte babilônica: ele decidiu não se contaminar com as finas iguarias do rei [Dn 1.8 – Resolveu Daniel, firmemente, não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; então, pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não contaminar-se]. É evidente que havia uma preocupação de Daniel com os cuidados alimentares dos judeus. Havia muita coisa que era colocada à mesa que, segundo a lei judaica, era proibida. Havia, também, a questão de que muito do que estava ali vinha diretamente dos templos pagãos. E havia, ainda, a questão do esquecimento da casa de Deus – foi lá na babilônia que os judeus compuseram o impressionante e pungente salmo 137 [Sl 137.5 - Se eu de ti me esquecer, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita].
O CRENTE E A LEI
Quase sempre que um novo convertido conversa com seus amigos de práticas pecaminosas de antes da sua conversão ele ouve a jocosa pergunta: "Então, agora você passou pra lei de crente?" Há 20 anos atrás o novo convertido tomaria tempo para explicar que se trata muito mais de ter uma nova natureza, uma nova perspectiva da vida e do mundo, e, principalmente, de um desejo sincero de agradar àquele que por ele morreu na cruz, ressuscitou ao terceiro dia e está à destra de Deus – de onde virá a julgar vivos e mortos. Entretanto, não é mais assim. O crente moderno diz rapidamente que a Igreja não lhe proíbe quase nada, que ele ainda é a mesma pessoa de antes, etc. Mas, se é realmente convertido, a verdade é que ele já não é a mesma pessoa [II Co 5.17 – E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas]. A lei foi abolida do ponto de vista de meio de salvação. A lei cerimonial e seus sacrifícios foram cumpridas, mas a lei moral ainda permanece. O crente ainda tem que santificar-se. O crente ainda tem que obedecer a uma vontade maior que a sua – ou obedece à vontade de Deus ou tem que sujeitar-se à escravidão ao diabo. Não há meio termo. Ainda há uma disputa em seu ser de duas leis, a lei da carne, para o pecado, e a do Espírito, para a vida [Rm 8.1-2 - Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte]. Mas ainda há uma lei – Cristo ainda exige obediência de seus discípulos [Jo 14.15 - Se me amais, guardareis os meus mandamentos].
Um outro aspecto sobre a lei que merece ser observado é que existem leis não escritas, chamadas de leis sociológicas, que exigem uma adaptação dos crentes. Este tomar forma do mundo é veementemente condenado pelas sagradas escrituras [Rm 12.2 –E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus].
O CRENTE E A ORIGEM DAS COISAS
Tudo o que Deus criou é bom – mas o uso que se faz das coisas criadas pode não ser bom. No palácio de Nabucodonossor havia de tudo – mas nem tudo o que ali era oferecido seria lícito a um servo do Deus vivo e santo. Como manter-se puro aproveitando-se dos prazeres ali oferecidos se a maioria do que era posto à mesa tinha origem escusa? Era fruto de opressão, de apropriação do alheiro, de destruição de famílias. Ali estavam jovens, homens e mulheres, sendo explorados pelos seus senhores. Aquelas iguarias eram impuras e um servo de Deus deveria rejeitar. Os prazeres do mundo, oferecidos aos crentes, podem até ser lícitos, mas não são convenientes [I Co 6.12 - Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas.] nem edificantes [I Co 10.23 - Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem todas edificam]. O crente deve ser cuidadoso com as iguarias que lhe são oferecidas – sua origem nem sempre é lícita e o resultado nem sempre é edificante.
O que é bom pode ser usado para o mal. Um produto que pode ser benéfico para a saúde pode ser transformado em droga. O desejo por companhia pode ser deturpado através da prostituição, adultério, fornicação, pornografia, lascívia, roupas imorais. O desejo por progredir financeiramente pode dar lugar ao roubo, à desonestidade, à fraude, à corrupção. O amor próprio pode dar lugar ao egocentrismo. E tudo isto é oferecido ao crente como se fosse o ideal, o desejável, o meio pelo qual o crente pode ser aceito no grupo. A proposta é: aceite o que te oferecemos e seja um de nós. A origem das iguarias é ilícita, e o crente precisa estar pronto a rejeitá-la, ainda que tenha que ficar com algumas coisas aparentemente menos apetitosas. O mundo oferece muitas “finas iguarias”, muitos prazeres da carne e deliciosos sabores do pecado. O mundo não só oferece coisas a você como também, de certo modo, determinará que você faça uso delas.
O CRENTE E O ESQUECIMENTO DO QUE APRENDEU
Daniel e seus amigos foram escravizados, desenraizados de Jerusalém, levados para mais de 400km de distancia, impedidos de retornar, emasculados, tiveram seus nomes trocados, mudaram suas vestes e só lhes faltava mudar os seus hábitos alimentares e religiosos. E é neste ponto que Daniel percebe que não pode mais ceder. Aspenaz teria 3 anos para mudar os costumes dos hebreus, fazê-los esquecer sua casa e seu Deus. Novamente chamo a atenção para o salmo 137 [Sl 137.5 - Se eu de ti me esquecer, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita]. Daniel não queria esquecer Jerusalém. Os hebreus não queriam esquecer Jerusalém. O crente não pode se esquecer de quem é seu Deus. Também não pode se esquecer de quem é. É um servo de Deus no meio de uma geração má e adúltera. É um servo de Deus na sua escola, no seu trabalho, entre os seus amigos. Num ambiente em que a prostituição, a fornicação, a pornografia, o sexo sem compromisso, as drogas, as bebidas ingeridas sem bom senso, os bailes libertinos, a jogatina, as roupas indecentes, as palavras maliciosas, a corrupção, a fraude, a desonestidade, e tudo o que se parece com isso é oferecido como normal, como algo que "todo mundo faz" o crente tem que mostrar-se diferente. Ele conquista a atenção dos seus amigos sendo diferente deles, não sendo igual. Seu poder está numa vida diferente, santa, incontaminada.
Daniel tomou esta decisão. Queria ser diferente. Conseguiu um tempo para tentar ser diferente. Aos crentes também são dadas oportunidades para serem diferentes – e não é sendo chamado à frente da sua turma para dizer o quanto Jesus mudou sua vida [se mudou mesmo]. A oportunidade vem vestida de prova: é o amigo que oferece uma cerveja, a amiga que oferece uma cola na prova, o patrão que oferece aumento mediante certas atitudes, a garota que se insinua, o círculo de escarnecedores que se fecha a seu redor... é nessa hora que o crente tem a sua verdadeira oportunidade de testemunhar, de dizer o que ele tem de diferente. De mostrar que tomou a firme decisão de ser diferente, de não se contaminar com as coisas e costumes deste mundo. Mesmo coisas que não são pecaminosas em si mesmas podem ser usadas para conduzir ao pecado. O que é lícito pode ser usado como armadilha do diabo e do mundo para atrair os desejos da carne. O crente deve ficar atento. Deve se lembrar que mesmo as coisas lícitas podem não ser convenientes nem edificantes, não devendo se deixar dominar por nenhuma delas [I Co 6.12]. Crente, seu poder está em ser diferente, não igual ao resto do mundo. Ser igual não chama a atenção, não atrai olhares nem admiração.
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