A ausência da Bíblia tornou necessária a Reforma
No segundo livro das crônicas, no capítulo 34,
versos 1 a 21 encontramos a história de um rei chamado Josias, que começou a
reinar com apenas oito anos de idade (v. 1). Josias era filho de um rei que não
se importava com as coisas de Deus, e não teve, portanto o exemplo paterno nem
a imposição de uma religião nacional para indicar que caminho tomar. Aos 18
anos Josias começou a buscar ao Senhor (v. 3a) e, dois anos depois, iniciou um
processo de purificação do país, retirando deles os deuses estranhos a Israel (v.
3b). Por este período havia apenas lembranças de que imagens não eram
permitidas e de que maneira era possível tornar um lugar sacrificialmente
impuro (v. 5). Somente 18 anos após o inicio do seu reinado Josias finalmente
percebeu a necessidade de restaurar a casa do Senhor (v. 8) que fora deixada em
ruínas pelos reis anteriores (v. 11). Nos trabalhos de restauração encontrou-se
o livro da Lei do Senhor, o pentateuco de Moisés (v. 14) escondido sob o
dinheiro do templo. O templo estava tão abandonado que havia se transformado em
um mero cofre. Josias, o rei de Israel, não conhecia este livro, e, ao conhecer
seu conteúdo, enche-se de temor (v. 19, 21) dando inicio a uma impressionante
reforma religiosa.
Esta pequena introdução demonstra a ligação entre
o livro da Lei do SENHOR e a pureza religiosa – o povo havia se afastado de
Deus porque não conhecia a sua Palavra. É por isso que, em vez de falar da
ligação da Bíblia com a Reforma Protestante, vamos falar do motivo que levou à
necessidade da Reforma. No tempo de Jesus havia apenas os 39 livros que
conhecemos por Antigo Testamento – a eles tanto Jesus quanto os apóstolos se
referem como a Palavra de Deus.A eles se juntariam os 27 escritos pelos
apóstolos e seus colaboradores, o que conhecemos como Novo Testamento (como
sabemos, Jesus não deixou nada escrito).
No início do sec. II a Igreja teve que enfrentar
o desafio proposto por Marcion, que rejeitava a autoridade de muitos livros
canônicos, buscando estabelecer quais os livros que realmente haviam sido
inspirados por Deus, adotando como critérios: a) Autoria ou endosso apostólico;
b) Recepção uniforme pela Igreja e c) Harmonia perfeita com o restante das
Escrituras. O primeiro a estabelecer o cânon exatamente como o conhecemos foi
Atanásio (367 d.C.,), que também recomendava a leitura do Didaché e do Pastor
de Hermas, rejeitando os livros atualmente conhecidos como apócrifos.
Com o passar do tempo diversas doutrinas
estranhas foram entrando na Igreja, até que em 1129 o Concílio de Tolosa
proibiu a leitura das Escrituras pelos leigos, considerando aceitável apenas a
existência da versão conhecida como Vulgata, em latim, língua cada vez menos
conhecida do povo (e também dos clérigos, muitos deles analfabetos). Ao povo
restava o uso de um saltério ou de um breviário, uma espécie de liturgia
responsiva. A primeira tradução para uma língua “comum” deu-se através de um
inglês da universidade de Oxford, em 1375, e seus discípulos espalharam a
bíblia por toda a Inglaterra, mesmo sob dura perseguição. Tendo morrido em paz,
a igreja romana o excomungou, exumou seus ossos e os queimou 30 após sua morte
durante o julgamento de outro pre-reformador, o boêmio Ian Huss.
A Reforma Protestante
tem início, porém, quando o monge alemão Martinho Lutero encontrou a resposta
para seus anseios espirituais nas páginas da carta de Paulo aos Romanos, em
1512, percebendo que a salvação lhe pertencia pela fé em Deus (sola
fide) em Deus através de Jesus Cristo e não por algo que ele
próprio realizasse (sola gratia),
passando a expor as Escrituras (sola scriptura). Num
embate com Tetzel, enviado por Roma para angariar recursos para construir a
basílica de São Pedro em Roma, Lutero afixa na porta do castelo de Wittenberg
as suas famosas 95 teses. Por mais pueril que seja o documento, ele serviu de
estopim para a Reforma que rapidamente se espalhou pela Alemanha, Suíça,
Holanda, incendiando as mentes e corações por toda a Europa. A Igreja romana
prontamente iniciou um movimento conhecido como Contra Reforma, mas era um
caminho sem volta – a bíblia seria, novamente, do povo, em sua língua materna.
Assim começaram a surgir traduções em alemão, francês, novas versões em inglês.
A proibição aos romanistas de lerem a bíblia só foi retirada no sec. XX, em
1963.
Da mesma maneira que, no decorrer dos séculos
por toda a idade média a Igreja foi abandonando as Escrituras para substituir
por costumes e dogmas sem a necessária sustentabilidade bíblica, a ponto de,
para restauração da Igreja ser necessária uma impressionante reforma como
aconteceu no sec. XVI, entre o final do sec. XX e esta pequena porção do sec.
XXI é possível perceber que, apesar de tantas e tão numerosas traduções,
versões, interpretações, encapamentos, edições comentadas, comemorativas,
talvez não haja muito o que comemorar. Nunca se vendeu tantas cópias das
Escrituras – e é possível que uma mesma pessoa tenha algumas dezenas de modelos
diferentes, mas, ao mesmo tempo, é provável que estejamos vivendo um tempo do
mais profundo desconhecimento das Escrituras. Vivemos tempo em que a autoridade
das Escrituras cedeu lugar ao ensino dos pseudo apóstolos, dos profetas de
conveniência, dos revelacionistas fraudulentos que nada tem a dizer de Deus e
falam muito mais de si mesmos e da vida de terceiros.
Sim, precisamos, em pleno sec. XXI, de uma nova
reforma. Não uma reforma das fachadas das Igrejas. Não uma reforma nas capas
das bíblias. Mas uma reforma no coração e na mente dos cristãos. Talvez com uma
nova reforma o cristianismo se divida mais uma vez. Talvez o numero de cristãos
tenha que se recontado. Talvez os proclamados 40.000 de evangélicos no Brasil
não sejam tantos milhões assim. Talvez, como nos dias da reforma do sec. XVI, o
cristianismo tenha que se ver ameaçado em cantões, como em Zurique e Genebra.
Tanto melhor, pois foi de lá que surgiram grandes proclamadores da Palavra.
Israel, nos dias de Josias, estava em paz – mas não em paz com Deus. O oriente
médio nos dias de Paulo estava em paz até que os transtornadores começassem a
dar a palavra aos gentios e esvaziassem os templos. A Europa estava em paz até
que Lutero, Zuínglio e Calvino, e outros mais, começassem a brandir as
Escrituras.
Talvez tenha chegado o momento de, como eles, a
Igreja do Senhor começar a levantar a voz mais uma vez e rejeitar toda
impostura, bradando: Basta-nos a fé, chega de shows. Basta-nos a graça de Deus,
chega de campanhas e promessas vazias. Basta-nos as Escrituras, mas queremos
toda ela – chega de interpretações e visões absurdas. Basta-nos Cristo, não
precisamos de pseudoapóstolos nem de milagreiros que só são capazes de realizar
milagres em seus quintais. Queremos glorificar apenas a Deus, chega de endeusar
homens. Como nas palavras daquele antigo hino: “É tempo, é tempo, o mestre está
chamando já”. Reforma, reforma verdadeira, pautada pelas Escrituras. É tempo,
povo de Deus.
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